sábado, 21 de abril de 2012

Alguma coisa de especial para voce Stherphany

O que realmente tudo aquilo que representa para alguem, no mundo em que vivemos, nos arriscamos a tudo e acabamos conhecendo pessoas incriveis, temos a possibilidades de saber escolher , o que tudo aquilo que possa representar para gente . pessoas de diversas personalidades, de diferentes cores , raças ou até mesmo cultura, estamos , arriscados a conhecer, no mundo em que estamos coisas futeis invadem nossas vidas , e quase controlam nosso ser, pelo simples fato de existir, nao custa nada experimentarmos. o mais triste do ser humano , e quando ele mente , pois nao tem volta , só existe uma possibilidade, reze para que esta pessoa seja realmente boa para lhe perdoar, nao é a questao de estar ali , mais estar a todo o instante a todo o momento, olhem , as pessoas erram , e é no erro que aprendem a viver melhor , é superando os obstaculos que somos capazes de ser mais fortes, é eu errei tambem , e com quem eu nao queria errar, e em pensar que eu so tenho essa chance de prova que aprendi, que nada pode existir sem voce!!! é muito intrigante nao ter aquela pessoa que sempre sorriu para voce!!!, e ate mesmo ver aquele desprezo, eu to aqui e to dizendo eu mudei realmente e nao é com aquela vontade de vingança que voce ira se tornar uma pessoa melhor ou adulta, lembre-se eu tambem posso fazer o mesmo , mais o que eu sinto nao deixa jamais eu fazer qualquer coisa de errado, eu sei que nada pode mudar o que eu ja tenha feito , mais o que vale é o agora, pois o passado , como ja se diz a palavra, ja se passou, nao volta mais , nao seria justo arriscar tudo isso , por besteira, pois tudo aquilo que vem de dentro nao pode sair , a vida nao nos permite nos perder, pois a perda , esta tao longe de acontecer e sabe como eu descobri ? sentindo !!!! me diga o que vc ja fez de bom hj ? me diga ate onde eu posso chegar ? a vida tem me ensinado que sofrimento só é uma fase que logo passa, as vezes minha cara(o), temos a oportunidade de nos fazermos inuteis , por alguns instantes, como é engraçado o tempo minha gente , o que o tempo nos faz , de como por um segundo podemos ser inuteis para alguem, eu digo , nao foi a intençao as circunstancias nao eram favoraveis, que nem tudo poderia ser como achavamos que seria, bom , eu to aqui, e te amo de todas as formas, ninguem irá te amar , melhor e nem mais do que eu te amo!!!!

Olá fãs do next speed car import, por gentileza da uma conferida no link abaixo que é do facebook

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terça-feira, 10 de abril de 2012

convite à filosofia/autora: Marilena Chaui, capitulos

Convite à Filosofia
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Capítulo 6
A liberdade
A liberdade como problema
A torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)
A luz apagada
(mas pior: o gosto
do escuro)
A porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro).
Este poema de José Paulo Paes nos fala, de forma extremamente concentrada e
precisa, do núcleo da liberdade e de sua ausência. O poeta lança um contraponto
entre uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato (a
torneira seca, a luz apagada, a porta fechada) e a inércia resignada no interior do
sujeito (a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por dentro). O contraponto é
feito pela expressão “mas pior”. Que significa ela? Que diante da adversidade,
renunciamos a enfrentá-la, fazemo-nos cúmplices dela e é isso o pior. Pior é a
renúncia à liberdade. Secura, escuridão e prisão deixam de estar fora de nós,
para se tornarem nós mesmos, com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e
nossa falta de vontade de girar a chave.
Um outro poema também oferece o contraponto entre nós e o mundo:
Mundo mundo vasto mundo,
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
Mais vasto é meu coração.
Neste poema, Carlos Drummond de Andrade, como José Paulo Paes, confrontanos
com a realidade exterior: o “vasto mundo” do qual somos uma pequena
parcela e no qual estamos mergulhados. Todavia, os dois poemas diferem, pois
em vez da inércia resignada, estamos agora diante da afirmação de que nosso ser
é mais vasto do que o mundo: pelo nosso coração – sentimentos e imaginação.

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somos maiores do que o mundo, criamos outros mundos possíveis, inventamos
outra realidade. Abrimos a torneira, acendemos a luz e giramos a chave.
Embora diferentes, os dois poemas apontam para o grande tema da ética, desde
que esta se tornou questão filosófica: O que está e o que não está em nosso
poder? Até onde de estende o poder de nossa vontade, de nosso desejo, de nossa
consciência? Em outras palavras: Até onde alcança o poder de nossa liberdade?
Podemos mais do que o mundo ou este pode mais do que nossa liberdade? O que
está inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e
forças exteriores que agem sobre nós? Por que o pior é a falta de sede e não a
torneira seca, o gosto do escuro e não a luz apagada, a chave imobilizada e não a
porta fechada? O que depende do “vasto mundo” e o que depende de nosso “mais
vasto coração ”?
Essa mesma interrogação, embora não explicitada nesses termos, encontra-se
presente no que escreveu o poeta Vicente de Carvalho em “Velho tema”:
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada,
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos
Existe, sim: mas nós não a alcançamos,
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
O poeta contrasta a “esperança malograda” de felicidade e a felicidade que
“existe, sim”, mas que não alcançamos porque “nunca a pomos onde nós
estamos”, embora esteja “sempre apenas onde a pomos”. Nossa alma fica
desterrada no sonho, exilada do real, porque incapaz de reconhecer que a
felicidade não é uma árvore distante, situada em algum lugar não localizável do
vasto mundo, mas está em nós, em nossa “leve esperança”, em nosso mais vasto
coração, dependendo apenas de nós mesmos, “porque está sempre apenas onde a
pomos”.
Porta fechada, vasto mundo, árvore milagrosa: a felicidade parece depender
inteiramente do que se encontra fora de nós.
Marilena Chauí
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Chave por dentro, coração mais vasto, estar sempre apenas onde a pomos: a
felicidade parece depender inteiramente de nós.
Seja de modo pessimista (como em José Paulo Paes e Vicente de Carvalho), seja
de modo otimista (como em Carlos Drummond), os três poetas nos colocam
diante da liberdade como problema. Filosoficamente, este se apresenta sob a
forma de dois pares de opostos:
1. o par necessidade-liberdade;
2. o par contingência-liberdade.
Torneira seca, luz apagada, porta fechada: a realidade é feita de situações
adversas e opressoras, contra as quais nada podemos, pois são necessárias. Vasto
mundo: se a realidade natural e cultural possui leis causais necessárias e normasregras
obrigatórias, se tanto as leis naturais como as leis culturais não dependem
de nós, se sermos seres naturais e culturais não depende de nós, se somos seres
naturais e culturais cuja consciência e vontade são determinadas por aquelas leis
(da Natureza) e normas-regras (da Cultura), como então falar em liberdade
humana? A necessidade que rege as leis naturais e as normas-regras culturais
não seria mais vasta, maior e mais poderosa do que nossa liberdade? O que
poderia estar em nosso poder?
Árvore milagrosa: se a felicidade e o bem são milagres, então são puro acaso,
pura contingência e não resta senão o jogo interminável entre a “leve esperança”
e a “grande esperança malograda”. Se o mundo é um tecido de acasos felizes e
infelizes, como esperar que sejamos sujeitos livres, se tudo o que acontece é
imprevisível, fruto da boa e da má sorte, de acontecimentos sem causa e sem
explicação? Como sermos sujeitos responsáveis num mundo feito de acidentes e
de total indeterminação? Se tudo é contingência, onde colocar a liberdade?
O par necessidade-liberdade também pode ser formulado em termos religiosos,
como fatalidade-liberdade, e em termos científicos, como determinismoliberdade.
Necessidade é o termo empregado para referir-se ao todo da realidade, existente
em si e por si, que age sem nós e nos insere em sua rede de causas e efeitos,
condições e conseqüências.
Fatalidade é o termo usado quando pensamos em forças transcendentes às nossas
e que nos governam, quer o queiramos ou não.
Determinismo é o termo empregado, a partir do século XIX, para referir-se à
realidade conhecida e controlada pela ciência e, no caso da ética, particularmente
ao ser humano como objeto das ciências naturais (química e biologia) e das
ciências humanas (sociologia e psicologia), portanto, como completamente
determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos, sentimentos
e ações, tornando a liberdade ilusória.
Convite à Filosofia
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O par contingência-liberdade também pode ser formulado pela oposição acasoliberdade.
Contingência ou acaso significam que a realidade é imprevisível e
mutável, impossibilitando deliberação e decisão racionais, definidoras da
liberdade. Num mundo onde tudo acontece por acidente, somos como um frágil
barquinho perdido num mar tempestuoso, levado em todas as direções, ao sabor
das vagas e dos ventos.
Necessidade, fatalidade, determinismo significam que não há lugar para a
liberdade, porque o curso das coisas e de nossas vidas já está fixado, sem que
nele possamos intervir. Contingência e acaso significam que não há lugar para a
liberdade, porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual
pudéssemos intervir.
Tomemos um exemplo da necessidade oposta à liberdade:
Não escolhi nascer numa determinada época, num determinado país, numa
determinada família, com um corpo determinado. As condições de meu
nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações, meus
desejos, meus sentimentos, minhas intenções, minhas condutas resultam dessas
condições, nada restando a mim senão obedecê-las. Como dizer que sou livre e
responsável?
Se, por exemplo, nasci negra, mulher, numa família pobre, numa sociedade
racista, machista e classista, que me discrimina racial, sexual e socialmente, que
me impede o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado, que me proíbe a
entrada em certos lugares, que me interdita amar quem não for da mesma “raça”
e classe social, como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma
maneira que não escolhi, mas foi-me imposta?
Tomemos, agora, um exemplo da contingência oposta à liberdade.
Quando minha mãe estava grávida de mim, houve um acidente sanitário,
provocando uma epidemia. Minha mãe adoeceu. Nasci com problemas de visão.
Foi por acaso que a gravidez de minha mãe coincidiu com o acaso da epidemia:
por acaso, ela adoeceu; por acaso, nasci com distúrbios visuais. Tendo tais
distúrbios, preciso de cuidados médicos especiais. No entanto, na época em que
nasci, o governo de meu país instituiu um plano econômico de redução de
empregos e privatização do serviço público de saúde. Meu pai e minha mãe
ficaram desempregados e não podiam contar com o serviço de saúde para meu
tratamento. Tivesse eu nascido em outra ocasião, talvez pudesse ter sido curada
de meus problemas visuais.
Quis o acaso que eu nascesse numa época funesta. Tal como sou, há coisas que
não posso fazer. Sou, porém, bem dotada para música e poderia receber uma
educação musical. Porém, houve a decisão do governo municipal de minha
cidade de demolir o conservatório musical público. Não posso pagar um
conservatório particular e ficarei sem a educação musical, porque, por acaso,
Marilena Chauí
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moro numa cidade que deixará de ter um serviço público de educação artística.
Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal, isso não
aconteceria comigo. Como, então, dizer que sou livre para decidir e escolher, se
vivo num mundo onde tudo acontece por acaso?
Diante da necessidade e da contingência, como afirmar que “mais vasto é meu
coração”? – ou que a felicidade “está sempre onde a pomos”? Examinemos mais
de perto os dois exemplos mencionados.
No primeiro exemplo – negra, mulher, pobre, numa sociedade racista, machista,
classista – parece que nada posso fazer. A porta está fechada e a luz apagada.
Porém, nada estará no poder de minha liberdade? Terei que gostar do escuro e
permanecer com a porta fechada? Se a ética afirmar que a discriminação étnica,
sexual e de classe é imoral (isto é, violenta), se eu tiver consciência disso, nada
farei? Serei impotente para lutar livremente contra tal situação? Mantendo-me
resignada, conformada, passiva e omissa não estarei fazendo da necessidade uma
desculpa, um álibi para não agir?
No segundo exemplo – epidemia, desemprego, fim dos serviços públicos de
saúde e educação artística – também parece que nada posso fazer. Será verdade?
Não estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condições
políticas em desculpa e álibi para minha resignação? Falarei em “destino” e “má
sorte” para explicar o fechamento de todos os possíveis para fim? Renunciarei à
vastidão do meu coração, aceitando que a felicidade sempre será posta onde não
estou?
Nos dois casos, podemos indagar se, afinal, para nós resta somente “a pena de
viver, mais nada” ou se, como escreveu o filósofo Sartre, o que importa não é
saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer
conosco.
Três grandes concepções filosóficas da liberdade
Na história das idéias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas
por figuras míticas. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a
fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte.
Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto
a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência
(ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que
trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto
(a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse
embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura
sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico
Buarque: “Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”.
As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e
da contingência, definindo o campo da liberdade possível.
Convite à Filosofia
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A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua
obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos,
chegando até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a
liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que
acontece sem escolha deliberada (contingência).
Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou
não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir.
A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para
determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como
ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade
que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma
para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os
motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por
ninguém.
Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre
alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário.
Contrariamente ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação
de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira,
no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação.
Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou
pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou
incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência
inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto
assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou
razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os
conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade
estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.
Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha
incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando
julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa
vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas
circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram.
Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto
quanto não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias.
Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos
estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o
que fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma
decisão nossa.
Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a
humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa idéia que encontramos no
Marilena Chauí
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poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto
mundo”. É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho,
quando nos diz que a felicidade “está sempre apenas onde a pomos” e “nunca a
pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder
a felicidade.
A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma
escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século
XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles
conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser
causa de si. Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser
forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido
espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de
Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela
vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes.
O todo ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa -,
ou a Cultura – como para Hegel – ou, enfim, uma formação histórico-social –
como para Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo
seus próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas.
Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior,
e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os
indivíduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual
incondicionado para escolher – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe,
uma formação social não escolhe -, mas é o poder do todo para agir em
conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo
necessariamente o que faz.
Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade
e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e
regras da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se
manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na
existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é
necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz.
Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em
conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é,
então, a liberdade humana?
São duas as respostas a essa questão:
1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo
livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da
totalidade;
2. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto,
são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas,
de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte
Convite à Filosofia
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ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo,
conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado,
graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam
sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas
o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa
capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em
que vamos agir.
Além da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estóicohegeliano,
existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das
duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional
de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas
pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos,
isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como
a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis.
Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma
coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no
século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa
quando temos o poder para fazê-la.
Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva.
O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por
nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade,
indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas
direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais
possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das
coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um
poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias
(como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três
concepções apresentadas, sempre levaram em conta a tensão entre nossa
liberdade e as condições – naturais, culturais, psíquicas – que nos determinam.
As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais,
as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia
como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas
teorias sobre a liberdade.
Liberdade e possibilidade objetiva
O possível não é o provável. Este é o previsível, isto é, algo que podemos
calcular e antever, porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que
analisamos. O possível, porém, é aquilo criado pela nossa própria ação. É o que
vem à existência graças ao nosso agir. No entanto, não surge como “árvore
milagrosa” e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação. A
Marilena Chauí
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liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações
que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.
Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e
circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo
interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem
um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos
ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo,
poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo
em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.
Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de
nós e seremos submetidos passivamente a ele – a torneira permanecerá seca ou
vazará, inundando a casa, a luz permanecerá apagada ou haverá um curtocircuito,
incendiando a casa, a porta permanecerá fechada ou será arrombada,
deixando a casa ser invadida. A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do
“posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição
para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades
objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do
que está dado.
Nada melhor do que um outro poema de Carlos Drummond para expressar essa
idéia. Trata-se de um poema no qual o poeta reconhece que seu coração não é
mais vasto do que o mundo, como ele imaginara:
MUNDO GRANDE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
Preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
Convite à Filosofia
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As diferentes dores dos homens,
Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
Num só peito de homem… sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
Tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
Tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
As sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
Países imaginários, fáceis de habitar,
Ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
Entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
Entre a vida e o fogo,
Meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.
Que nos diz o poeta?
Que não é na solidão de uma vontade individual (“mais vasto é meu coração”,
como o poeta escrevera antes) que podemos enfrentar livremente o “mundo
grande”, mas na companhia dos outros que nos trazem a notícia de que o mundo
Marilena Chauí
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cresce todo dia, isto é, transforma-se incessantemente “entre fogo e amor”, entre
lutas, guerras, conflitos e busca de paz, entendimento e justiça. Somos livres não
contra o mundo, mas no mundo – “meu coração cresce” (meu poder de querer e
de fazer aumenta) -, mudando-o na companhia dos outros, aprendendo “a
linguagem com que os homens se comunicam”, isto é, suas dores, seus
sofrimentos, suas batalhas e suas esperanças. Somente tendo contato com o
mundo, conhecendo seus limites e suas aberturas para os possíveis é que nossa
liberdade poderá exclamar: “Ó vida futura, nós te criaremos”.
É essa mesma concepção da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no
mundo que encontramos no filósofo Merleau-Ponty, quando escreve:
Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob
o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por
ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e
estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os
dois aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem
escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura
consciência… A situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio
entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a “parte que
cabe à situação” e a “parte que cabe à liberdade”.
Tortura-se um homem para fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e
endereços que lhe querem arrancar, não é por sua decisão solitária e sem
apoios no mundo. É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda
engajado numa luta comum; ou é porque, desde há meses ou anos, tem
enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida;
ou, enfim, é porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre
pensou e disse sobre a liberdade.
Tais motivações não anulam a liberdade, mas lhe dão ancoradouro no ser.
Ele não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com
seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou,
enfim, a consciência orgulhosamente solitária que é, ainda, um modo de
estar com os outros… Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos
escolhe…
Concretamente tomada, a liberdade é sempre o encontro de nosso interior
com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, à medida que
diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida. Há
um campo de liberdade e uma “liberdade condicionada”, porque tenho
possibilidades próximas e distantes…
A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações
dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha vida
do sentido espontâneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido,
Convite à Filosofia
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esposando-o inicialmente para depois afastar-se dele, e não por uma
criação absoluta…
Sou uma estrutura psicológica e histórica. Recebi uma maneira de existir,
um estilo de existência. Todas as minhas ações e meus pensamentos estão
em relação com essa estrutura. No entanto, sou livre, não apesar disto ou
aquém dessas motivações, mas por meio delas, são elas que me fazem
comunicar com minha vida, com o mundo e com minha liberdade.
A liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia
fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por
nossa ação. Essa força transformadora, que torna real o que era somente possível
e que se achava apenas latente como possibilidade, é o que faz surgir uma obra
de arte, uma obra de pensamento, uma ação heróica, um movimento anti-racista,
uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social, uma resistência à
tirania e a vitória contra ela.
O possível não é pura contingência ou acaso. O necessário não é fatalidade bruta.
O possível é o que se encontra aberto no coração do necessário e que nossa
liberdade agarra para fazer-se liberdade. Nosso desejo e nossa vontade não são
incondicionados, mas os condicionamentos não são obstáculos à liberdade e sim
o meio pelo qual ela pode exercer-se.
Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais – justiça,
igualdade, veracidade, ge nerosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e,
no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de
modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é
o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O
segundo momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto
é, uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal.
Esse segundo momento indaga se um possível existe e se temos o poder para
torná-lo real, isto é, se temos como passar da “pena de viver” e da “árvore
milagrosa” a uma felicidade que, enfim, esteja onde nós estamos. O terceiro
momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação. O
último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível
num real, uma possibilidade numa realidade.
Eis por que o poeta José Paulo Paes introduz o “mas o pior” em seu poema. De
fato, a torneira está seca, mas o pior é não ter sede, isto é, não agir para que a
água possa correr pela torneira. De fato, a luz está apagada, mas o pior é gostar
do escuro, isto é, não agir para que a luz possa acender-se. De fato, a porta está
trancada, mas o pior é saber que a chave está do lado de dentro e nada fazer para
girá-la. O mundo já está constituído, escreve Merleau-Ponty – a torneira está
seca, a luz apagada e a porta fechada. Porém, o mundo, prossegue o filósofo, não
está completamente constituído, não está pronto e acabado, mas, como escreve
Marilena Chauí
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– 471 –
Carlos Drummond, “o grande mundo está crescendo todo dia” pelo fogo e amor
dos seres humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele.
Vida e morte
Vida e morte não são, para nós humanos, simples acontecimentos biológicos.
Como disse um filósofo, as coisas aparecem e desaparecem, os animais começam
e acabam, somente o ser humano vive e morre, isto é, existe. Vida e morte são
acontecimentos simbólicos, são significações, possuem sentido e fazem sentido.
Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa temporalidade e de
nossa identidade: uma vida é minha e minha, a morte. Esta, e somente ela,
completa o que somos, dizendo o que fomos. Por isso, os filósofos estóicos
propunham que somente após a morte, quando terminam as vicissitudes da vida,
podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz. Enquanto vivos, somos tempo e
mudança, estamos sendo. Os filósofos existencialistas disseram: a existência
precede a essência, significando com isso que nossa essência é a síntese final do
todo de nossa existência. “Quem não souber morrer bem terá vivido mal”,
afirmou Sêneca.
Num de seus ensaios, Que filosofar é aprender a morrer, Montaigne escreve:
Qualquer que seja a duração de nossa vida, ela é completa. Sua utilidade
não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe dais. Há
quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis
fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido
bastante.
E conclui:
Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a
morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência
compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos
exime de toda sujeição e coação.
Morrer é um ato solitário. Morre-se só: a essência da morte é a solidão. O morto
parte sozinho; os vivos ficam sozinhos ao perdê-lo. Resta saudade e recordação.
Viver é estar com os outros. Vive -se com outrem: a essência da vida é a
intercorporeidade e a intersubjetividade. Os vivos estão entrelaçados: estamos
com os outros e eles estão conosco, somos para os outros e eles são para nós. No
ensaio O filósofo e sua sombra, Merleau-Ponty nos diz:
De “morre-se só” para “vive-se só” a conseqüência não é exata, pois se
apenas a dor e a morte forem invocadas para definir a subjetividade, então,
para ela, a vida com outros e no mundo serão impossíveis… Estamos
verdadeiramente sós apenas quando não o sabemos. Essa ignorância é a
solidão… A solidão de onde emergimos para a vida intersubjetiva é
Convite à Filosofia
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– 472 –
apenas a névoa de uma vida anônima e a barreira que nos separa dos
outros é impalpável.
A ética é o mundo das relações intersubjetivas, isto é, entre o eu e o outro como
sujeitos e pessoas, portanto, como seres conscientes, livres e responsáveis.
Nenhuma experiência evidencia tanto a dimensão essencialmente intersubjetiva
da vida e da vida ética quanto a do diálogo. Ouçamos ainda uma vez Merleau-
Ponty:
Na experiência do diálogo, constitui-se entre mim e o outro um terreno
comum, meu pensamento e o dele formam um só tecido, minhas falas e as
dele são invocadas pela interlocução, inserem-se numa operação comum
da qual nenhum de nós é o criador. Há um entre-dois, eu e o outro somos
colaboradores, numa reciprocidade perfeita, coexistimos no mesmo
mundo. No diálogo, fico liberado de mim mesmo, os pensamentos de
outrem são dele mesmo, não sou eu quem os formo, embora eu os aprenda
tão logo nasçam e mesmo me antecipe a eles, assim como as objeções de
outrem arrancam de mim pensamentos que eu não sabia possuir, de tal
modo que, se lhe empresto pensamentos, em troca ele me faz pensar.
Somente depois, quando fico sozinho e me recordo do diálogo, fazendo
deste um episódio de minha vida privada solitária, quando outrem tornouse
apenas uma ausência, é que posso, talvez, senti-lo como uma ameaça,
pois desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordância e
na discordância.
Porque a vida é intersubjetividade corporal e psíquica, e porque a vida ética é
reciprocidade entre sujeitos, tantos filósofos deram à amizade o lugar de virtude
proeminente, expressão do mais alto ideal de justiça. Num ensaio, Discurso da
servidão voluntária, procurando compreender por que os homens renunciam à
liberdade e voluntariamente servem aos tiranos, La Boétie contrapôs a amizade à
servidão voluntária, escrevendo:
Certamente, o tirano nunca ama e nem é amado. A amizade é nome
sagrado, coisa santa: só pode existir entre gente de bem, nasce da mútua
estima e se conserva não tanto por meio de benefícios, mas pela vida boa e
pelos costumes bons. O que torna um amigo seguro de outro é a sua
integridade. Como garantias, tem seu bom natural, sua fidelidade, sua
constância. Não pode haver amizade onde há crueldade e injustiça. Entre
os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não sociedade. Não se
apóiam mutuamente, mas temem-se mutuamente. Não são amigos, são
cúmplices.
Assim também Espinosa afirma que o ser humano é mais livre na companhia dos
outros do que na solidão e que “somente os seres humanos livres são gratos e
reconhecidos uns aos outros”, porque os sujeitos livres são aqueles que “nunca
agem com fraude, mas sempre de boa-fé”.
Marilena Chauí
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Se perguntarmos quais são, afinal, os valores, os motivos, os fins e os
comportamentos éticos, responderemos dizendo que são aqueles nos quais
buscamos eliminar a violência na relação com o outro, ao mesmo tempo em que
procuramos manter a fidelidade a nós mesmos. Ético é não desaprender “a
linguagem com que os homens se comunicam” e deixar “o coração crescer” para
sermos mais nós mesmos quanto mais formos capazes de reciprocidade e
solidariedade.
A ética se move no campo das paixões, dos desejos, das ações e dos princípios,
possuindo uma dimensão valorativa e normativa. Por um lado, valores e normas
são exteriores e anteriores a nós, definidos pela Cultura e pela sociedade onde
vivemos; mas, por outro lado, somos sujeitos éticos e, portanto, capazes tanto de
interiorizar valores e normas existentes, quanto de criar novos valores e normas.
Minha liberdade, escreve um filósofo, é o poder fundamental que tenho de ser o
sujeito de todas as minhas experiências. Por atos de liberdade, interpretamos
nossa situação – valores, normas, princípios – e dessa interpretação nasce em nós
a aceitação ou a recusa, a interiorização ou a transgressão, a continuação ou a
criação. A ação mais alta da vida livre, disse Nietzsche, é nosso poder para
avaliar os valores.
O filósofo grego Epicuro escreveu: “O essencial para nossa felicidade é nossa
condição íntima e dela somos senhores”. Ser senhor de si – isto é, autônomo – e
ser capaz de philia – isto é, de reciprocidade, de relação intersubjetiva como
coexistência e não-violência – é o núcleo da vida ética. Como disse Epicuro, “a
justiça não existe por si própria, mas encontra-se sempre nas relações recíprocas,
em qualquer tempo e lugar em que exista entre os humanos o pacto de não causar
nem sofrer dano”.
Convite à Filosofia
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Capítulo 7
A vida política
Paradoxos da política
Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua,
fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos
o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se
interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade
própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -,
enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma
obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua
aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou
concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?
Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade
específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -,
ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de
reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos
governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma
ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A
política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como
alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?
No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido.
De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”,
“política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política
sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao
governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da
escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou
privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e
estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao
currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que
será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos
salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas,
etc.
Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da
empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos
investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão
Marilena Chauí
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do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às
relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira
de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e
participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às
formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes,
etc.
Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É
a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação
coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão
de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e
administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige
formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e
organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que
organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política
diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva
organização e administração de grupos?
Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos
governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das
atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e
organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou
levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda
modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e
organização.
Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e
um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três
significados principais inter-relacionados:
1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder
público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar
governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz
respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo
que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições
permanentes que permitem a ação dos governos.
Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de
impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os
costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos
membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou
do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem
considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos).
Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e
a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado,
Convite à Filosofia
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– 476 –
mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade
julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.
A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que
detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como
às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e
mesmo à forma do Estado;
2. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e
profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização
sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando
cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo
distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais
que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por
eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes
“nossos”;
3. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito
confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e
freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios
ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso
comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um
poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas
diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de
práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da
sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e
do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais
ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes
fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e
cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócioeconômica
e política.
Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da
palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade
como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações,
criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da
desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance,
fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência
entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele
que reduz a política à ação de especialistas e profissionais.
Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e
verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam
percebidas como absurdas.
Tomemos um exemplo recente da história da política do País. Em 1993, durante
o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente
Marilena Chauí
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da república, Fernando Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos
políticos, ouvimos, em toda a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do
qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade
preservada se o julgamento do pedido não fosse um “julgamento político”.
Onde está o paradoxo? No fato de que a república brasileira é constituída por três
poderes políticos – executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo
Tribunal Federal, sendo um poder político da República (um poder do Estado),
não pode ficar fora da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o
órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar
que um poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?
Mais paradoxal, ainda, foi o modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram
seu próprio trabalho, dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e
nisso reside o paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da
Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então,
separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação
política?
Na verdade, quando se insistia em que o julgamento “não fosse político” e se
elogiava o julgamento por “ter sido apenas legal ”, o que estava sendo
pressuposto por todos (sociedade e juízes) era a identificação costumeira entre
política e interesses particulares escusos, contrários aos da maioria, que por isso
deve ser protegida pela lei contra a política. O paradoxo está no fato de que uma
forma essencial da política – a lei – aparece como proteção contra a própria
política.
Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica
uma greve, declarando que se trata de “greve política”. É curioso que usemos,
sem problema, a expressão “política sindical” e, ao mesmo tempo, a
condenemos, criticando uma greve sob a alegação de ser “política”.
Em certos casos, é compreensível o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de
trabalhadores de uma fábrica de automóveis que, em nome de melhores salários,
entram em greve contra a direção da empresa, compreende-se que a greve seja
considerada “simplesmente econômica”. Ao criticá-la como “greve política”
está-se, como sempre, querendo dizer que os grevistas, sob a aparência de uma
reivindicação salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e
ilegítimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns
sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um sentido
pejorativo à greve.
Há casos, porém, em que a expressão “greve política”, usada como crítica ou
acusação, é surpreendente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de
um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo. Estão,
portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a greve é e só pode
ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o que ela é? O motivo é
Convite à Filosofia
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simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa que ela é “política” é
fazer uma acusação. A crítica só em aparência está dirigida contra a greve, pois,
realmente, está voltada contra a política, imaginada como algo maléfico.
Essa visão generalizada da política como algo perverso, perigoso, distante de nós
(passa-se no Estado), praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra
“nós”, sob o disfarce de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo
secreto e desconhecido, uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta
e, através da polícia, uma força repressora usada contra a sociedade. Essa
imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes, que
consentem a violência, é paradoxal pelo menos por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, porque a política foi inventada pelos humanos como o modo
pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformá-los em
guerra total, em uso da força e extermínio recíproco. Numa palavra, como o
modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus
direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política
seja percebida como distante, maléfica e violenta?
Em segundo lugar, porque a política foi inventada como o modo pelo qual a
sociedade, internamente dividida, discute, delibera e decide em comum para
aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros. Como
explicar, então, que seja percebida como algo que não nos concerne, mas nos
prejudica, não nos favorece, mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de
outros?
Que aconteceu a essa invenção humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo
de que gostaríamos de nos livrar?
Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos
políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes
impunes praticados por políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos
interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos
públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento
das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos
objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.
Ao lado desses fatos, não passa um dia sem que saibamos o modo desumano,
autoritário, violento com que funcionários públicos, cujo salário é pago por nós
(através de impostos), tratam a população que busca os serviços públicos.
Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão
redigidas, tornando-se incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam
interpretadas por especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam
corretamente, se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.
O que é curioso, porém, aumentando nossa percepção da política como algo
paradoxal, é o fato de que só podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles
Marilena Chauí
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através da própria política, pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se
realiza uma revolução, os motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na
forma e no conteúdo do poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero
humano contra todas as modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo,
violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o
término da própria política.
As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em
política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade
ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas,
mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política,
pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política
existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer
política.
O vocabulário da política
O historiador helenista Moses Finley, estudando as sociedades grega e romana,
concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos.
Antes de examinarmos o que foi tal invenção, já podemos compreender a origem
greco-romana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário
usado em política: democracia, aristocracia, oligarquia, tirania, despotismo,
anarquia, monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos;
república, império, poder, cidade, ditadura, senado, povo, sociedade, pacto,
consenso são palavras latinas que designam regimes políticos, agentes políticos,
formas de ação política.
A palavra política é grega: ta politika, vinda de polis.
Polis é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos
cidadãos (politikos), isto é, pelos homens nascidos no solo da Cidade, livres e
iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante
a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações
que a Cidade deve ou não deve realizar).
Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis,
erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços
públicos (abertura de ruas, estradas e portos, construção de templos e
fortificações, obras de irrigação, etc.) e das atividades econômicas da Cidade
(moeda, impostos e tributos, tratados comerciais, etc.).
Civitas é a tradução latina de polis, portanto, a Cidade como ente público e
coletivo. Res publica é a tradução latina para ta politika, significando, portanto,
os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou
cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de Roma.
Convite à Filosofia
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Polis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político
moderno, chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário
público, serviços públicos) e sua administração pelos membros da Cidade.
Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que designamos
modernamente por práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no
poder, aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de
sua aplicação, no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da
comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público.
Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que,
antes deles, não existiam o poder e a autoridade, mas sim que inventaram o poder
e a autoridade políticos propriamente ditos. Para compreendermos o que se
pretende dizer com isso, convém examinarmos como era concebido e praticado o
poder nas sociedades não greco-romanas.
O poder despótico
Nas realezas existentes antes dos gregos, nos territórios que viriam a formar a
Grécia – realezas micênicas e cretenses -, bem como as que existiam nos
territórios que viriam a formar Roma – realezas etruscas -, assim como nos
grandes impérios orientais – Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China – vigorava o
poder despótico ou patriarcal .
Em grego, despotes, e, em latim, pater-familias, o patriarca, é o chefe de
famíliaxiv cuja vontade absoluta é a lei: “Aquilo que apraz ao rei tem força de
lei”. O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo,
aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte
de todos os membros do grupo, sobre a posse e a distribuição das riquezas, a
guerra e a paz, as alianças (em geral sob a forma de casamentos), o proibido e o
permitido.
Embora, de fato, a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos
rebanhos, sendo chefe o detentor da riqueza, procurava-se garanti-lo contra
revoltas e desobediências afirmando-se uma origem sobrenatural e divina para
ele. Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles, o detentor do
poder também era detentor do privilégio de relacionar-se diretamente com o
divino ou com o sagrado, concentrando em suas mãos a autoridade religiosa.
Por sua riqueza, autoridade religiosa e posse de armas, o detentor do poder era
também chefe militar, concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a
decisão sobre a guerra e a paz. Era comandante.
O chefe era um senhor, enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo
quanto nele houvesse (portanto, a riqueza do grupo), a autoridade religiosa e
militar, sendo, por isso, rei, sacerdote e capitão.
Com o crescimento demográfico (através das alianças pelos casamentos entre
famílias régias), a expansão territorial (através das guerras de conquista), a
Marilena Chauí
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divisão social do trabalho (através da escravização dos vencidos de guerra e das
funções domésticas das mulheres) e os acordos militares e navais entre grupos, a
autoridade, embora concentrada nas mãos do rei, passa a ser delegada por ele a
seus representantes (em geral, membros de sua família e das famílias aliadas).
Surge, assim, uma repartição das funções de direção ou de poder: a casta
sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros, a militar. Senhores das
terras, dos escravos, das mulheres, das armas e dos deuses, os grupos detentores
da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da
comunidade, sob o poder do rei, ao qual prestavam juramento de lealdade e
pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos
demais.
A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais:
1. como propriedade privada do rei e, portanto, como domínio pessoal do chefe
ou patriarca. Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido, segundo a
vontade arbitrária do rei, aos chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais e
militares, mediante serviços e/ou tributos. Em geral, esse tipo de propriedade
prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de
irrigação e de transporte de água, que um proprietário isolado não poderia
realizar, não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria
que atravessar terras de outros proprietários, devendo pagar-lhes tributos ou
fazer-lhes guerra. A propriedade, ficando na posse do rei, permitia que este
usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e
transporte de águas, ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar
toda e qualquer terra para realizar as obras;
2. como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da
aldeia, que pagava tributos ao rei em troca de proteção, submetendo-se ao poder
régio e, portanto, à autoridade religiosa e militar do senhor.
Seja num caso como noutro, o rei era forçado a exercer um controle cerrado
sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras, pois as rebeliões eram
freqüentes e a disputa pelo poder interminável. Tal controle era feito por
representantes do rei, quando percorriam as terras registrando a produção e
recolhendo tributos, punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos
régios, sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e
confederações de aldeias.
Com isso, o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos,
custeados pelos chefes locais e suas aldeias. Os funcionários régios precisavam
saber ler, escrever e contar. Nas sociedades de que falamos, tais conhecimentos
eram privilégio de um grupo, os sacerdotes. Por esse motivo, a ênfase no caráter
sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o
poderio sacerdotal, sustentáculo indispensável do poder régio. Deuses e armas
eram os pilares da autoridade.
Convite à Filosofia
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– 482 –
Assim constituído, o poder possuía as seguintes características:
? despótico ou patriarcal: era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto
de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar, por
alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e
os súditos ofereciam lealdade e obediência, jurando cumprir a vontade do
primeiro;
? total : o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para
decidir quanto ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do
chefe), para estabelecer os vínculos com o sagrado, isto é, com os deuses e
antepassados (o chefe detém o poder religioso), para decidir quanto à guerra e à
paz (o chefe detém o poder militar). A tomada de decisão cabia exclusivamente
ao rei. Este possuía conselheiros (sacerdotes e militares), que o informavam e lhe
sugeriam condutas e ações, mas a decisão cabia apenas a ele. O conselho era
secreto, os motivos de uma decisão eram secretos, o que se passava entre o rei e
seus conselheiros era secreto. Somente a decisão tornava-se pública, sob a forma
de um decreto real;
? incorporado ou corporificado: o detentor do poder figurava em seu próprio
corpo as características do poder, apresentando-se como manifestação da própria
comunidade. Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige, seu peito encarnava a
vontade que ordena, seus membros superiores encarnavam os delegados que o
representavam (sacerdotes e militares), seus membros inferiores encarnavam os
súditos que o obedeciam. Essa figuração do poder no corpo do próprio rei
indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada, na
qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado, só tendo existência
social graças a esse lugar. O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia,
mas também a forte centralização da autoridade, concentrada na cabeça e no
peito do dirigente;
? mágico: por receber a autoridade dos deuses, o detentor do poder possuía força
sobrenatural ou mágica. Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir
aquilo que era dito (o rei dizia “faça-se” e as coisas aconteciam simplesmente
porque ele as havia dito e desejado); seus gestos e desejos tinham força para
matar e curar, sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele, dele
dependiam a fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na guerra, o início ou o fim
de uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;
? transcendente: por ser de origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se
em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade. Essa
divinização o colocava acima e fora da comunidade. Tal separação levava a
considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente, graças ao qual via
tudo, sabia tudo e podia tudo, tendo o império total sobre a comunidade;
? hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um
membro da família real. A família reinante constituía uma linhagem e uma
Marilena Chauí
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dinastia, que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do
poder por uma outra família, que dava início a uma nova linhagem ou dinastia.
A invenção da política
Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é
que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder. Embora, nos
começos, gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social
de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos
primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a concentração dos
poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das
armas, representante da divindade.
A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do
rei, nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve -se como
propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade estava em não
formarem uma casta fechada sobre si mesma, porém aberta à incorporação de
novas famílias e de indivíduos ou não-proprietários enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma, há três
aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política. O primeiro,
como assinalamos há pouco, é a forma da propriedade da terra; o segundo, o
fenômeno da urbanização; e o terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.
Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias
independentes, e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formouse
na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as
aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram,
fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao poder com as
grandes famílias agrárias. Uma lut a de classes perpassa a história grega e romana
exigindo solução.
A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais
que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e
comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população
urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de “os pobres”.
A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres.
Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das
guerras externas, tanto para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua
cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar
fazia com que todos se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas
decisões econômicas e legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução.
Essa solução foi a política.
Finalmente, os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma
divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas
agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação
Convite à Filosofia
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dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas,
por exemplo, a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas
demos; em Roma, em tribus.
Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação
econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No
caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar
diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os nãoproprietários
ou os pobres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um
representante – o tribuno da plebe – para defender e garantir os interesses plebeus
junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os
patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era,
assim, uma oligarquia.
Diante do poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político
porque:
? separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio
patriarcal e patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à
coletividade; separaram privado e público e impediram a identificação do poder
político com a pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por
eleições entre os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
? separaram autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao
segundo. Isso não significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o
poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as missões
militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e
só depois realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos
eram hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos
cidadãos;
? separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a
divinização dos governantes. Isso não significa que o poder político deixasse de
ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os augúrios, em
Roma, eram respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém, que os
dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso
implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade
sacerdotal;
? criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e
pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que
fosse confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o
direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e
autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância impessoal e
coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e
matar para vingar, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por
ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as
Marilena Chauí
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próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime. O monopólio
da força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito;
? criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos, isto
é, os tribunais e os magistrados;
? criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e
recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de
taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza
nas mãos dos dirigentes;
? criaram o espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o senado
romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas
opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por meio
do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o
coração da invenção política. De fato, e como vimos, a marca do poder despótico
é o segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário,
introduz a prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade conheça
as deliberações e participe da tomada de decisão.
Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e decisão
significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações não foram
fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que erros de
avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar problemas
novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de novas leis
e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram a política
inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção de possível
ou de possibilidade, isto é, a idéia de uma criação contínua da realidade social.
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a política é
inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou
uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de reprimir os
conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece como
trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a
causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana
fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental. Eis por que os
historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de
Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu ao
domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política:
para eles, o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao
despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e
romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios
fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era agrária e
Convite à Filosofia
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escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída
dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era
patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da
cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os
miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da
Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que
os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito
da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que
somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do
evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas,
construção de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos
artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa
e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade
oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem escondê-los
sob a sacralização do poder e sem fechar-se à temporalidade e às mudanças.
Sociedade contra o Estado
Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta
despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se
economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando
diferenças sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e
pobres, livres e escravo s, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas
internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.
Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos
conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia que,
como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das terras,
armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido por uma
parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições públicas
fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Nos dois casos,
surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la,
comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.
Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as
sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa
visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os
conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as
diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre
superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita,
moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o
europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.
Marilena Chauí
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Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas,
astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes,
pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por
esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações
americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus.
Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos
americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a
evangelização e o extermínio.
A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é
etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos
proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização.
Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e possuem
sociedades carentes: falta-lhes o mercado (moeda e comércio), a escrita
(alfabética), a História e o Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio,
sem escrita, sem memória e sem Estado.
O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma
completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que
possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica
(isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica,
gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais
específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que
não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -,
transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em
geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades
possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a
Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da
Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais
sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são
sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.
As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrandose
num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos
três grandes impérios situados no México, na América Central e no norte da
América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na forma das
chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma
organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder.
As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade
privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais
nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por
sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são
internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino
Convite à Filosofia
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comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são
vistos uns pelos outros diariamente.
Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma
instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A
chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não
manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de
acordo com suas tradições e necessidades.
A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu exterior,
isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se refere à
guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é representar a
comunidade perante outras comunidades.
O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois este
pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções: doar
presentes, fazer a paz e falar.
Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o chefe
deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo, isto é,
devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a maneira
deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa
concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade
econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do
Estado.
Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir. Não
dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz ele? A
paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons
sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as
pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como
comunidade indivisa.
Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a
diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força,
liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na
fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante
da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido,
ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando
à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu
prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá
atenção. Ninguém o escuta.
A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma,
diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse
ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela
qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a
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comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra,
a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.
Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais
como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas funções para
criar o poder separado, ele é morto pela comunidade.
Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos
pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos,
a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga lembrança
utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades, mundo
afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada, das
divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na
necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como
poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o
Estado como poder de coerção social?
Convite à Filosofia
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Capítulo 8
As filosofias políticas – 1ª parte
A vida boa
Quando lemos os filósofos gregos e romanos, observamos que tratam a política
como um valor e não como um simples fato, considerando a existência política
como finalidade superior da vida humana, como a vida boa, entendida como
racional, feliz e justa, própria dos homens livres. Embora considerem a forma
mais alta de vida a do sábio contemplativo, isto é, do filósofo, afirmam que, para
os não-filósofos, a vida superior só existe na Cidade justa e, por isso mesmo, o
filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da
melhor política para a Cidade.
Política e Filosofia nasceram na mesma época. Por serem contemporâneas, diz-se
que “a Filosofia é filha da polis” e muitos dos primeiros filósofos (os chamados
pré-socráticos) foram chefes políticos e legisladores de suas cidades. Por sua
origem, a Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político, elaborando
teorias para explicar sua origem, sua finalidade e suas formas. A esses filósofos
devemos a distinção entre poder despótico e poder político.
Origem da vida política
Entre as explicações sobre a origem da vida política, três foram as principais e as
mais duradouras:
1. As inspiradas no mito das Idades do Homem ou da Idade de Ouro. Esse mito
recebeu inúmeras versões, mas, em suas linhas gerais, narra sempre o mesmo: no
princípio, durante a Idade de Ouro, os seres humanos viviam na companhia dos
deuses, nasciam diretamente da terra e já adultos, eram imortais e felizes, sua
vida transcorria em paz e harmonia, sem necessidade de leis e governo.
Em cada versão, a perda da Idade de Ouro é narrada de modo diverso, porém, em
todas, a narrativa relata uma queda dos humanos, que são afastados dos deuses,
tornam-se mortais, vivem isoladamente pelas florestas, sem vestuário, moradia,
alimentação segura, sempre ameaçados pelas feras e intempéries. Pouco a pouco,
descobrem o fogo: passam a cozer os alimentos e a trabalhar os metais,
constroem cabanas, tecem o vestuário, fabricam armas para a caça e proteção
contra animais ferozes, formam famílias.
A última idade é a Idade do Ferro, em geral descrita como a era dos homens
organizados em grupos, fazendo guerra entre si. Para cessar o estado de guerra,
os deuses fazem nascer um homem eminente, que redigirá as primeiras leis e
Marilena Chauí
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criará o governo. Nasce a política com a figura do legislador, enviado pelos
deuses.
Com variantes, esse mito será usado na Grécia por Platão e, em Roma, por
Cícero, para simbolizar a origem da política através das leis e da figura do
legislador. Leis e legislador garantem a origem racional da vida política, a obra
da razão sendo a ordem, a harmonia e a concórdia entre os humanos sob a forma
da Cidade. A razão funda a política.
2. As inspiradas pela obra do poeta grego Hesíodo, O trabalho e os dias. Agora,
a origem da vida política vincula-se à doação do fogo aos homens, feita pelo
semideus Prometeu. Graças ao fogo, os humanos podem trabalhar os metais,
cozer os alimentos, fabricar utensílios e sobretudo descobrir-se diferentes dos
animais. Essa descoberta leva a perceber que viverão melhor se viverem em
comunidade, dividindo os trabalhos e as tarefas. Organizados em comunidades,
colocam-se sob a proteção dos deuses de quem receberam as leis e as orientações
para o governo.
Pouco a pouco, porém, descobrem que sua vida possui problemas e exige
soluções que somente eles podem enfrentar e encontrar. Mantendo a piedade
pelos deuses, entretanto, criam leis e instituições propriamente humanas, dando
origem à comunidade política propriamente dita. É a teoria política defendida
pelos sofistas. Nessa concepção, o desenvolvimento das técnicas e dos costumes
leva a convenções entre os humanos para a vida em comunidade sob leis. A
convenção funda a política.
3. As teorias que afirmam que a política decorre da Natureza e que a Cidade
existe por natureza. Os humanos são, por natureza, diferentes dos animais,
porque são dotados do logos, isto é, da palavra como fala e pensamento. Por
serem dotados da palavra, são naturalmente sociais ou, como diz Aristóteles, são
animais políticos. Não é preciso buscar nos deuses, nas leis ou nas técnicas a
origem da Cidade: basta conhecer a natureza humana para nela encontrar a causa
da política. Os humanos, falantes e pensantes, são seres de comunicação e é essa
a causa da vida em comunidade ou da vida política. Nessa concepção, a
Natureza funda a política.
Na primeira teoria, a política é o remédio que a razão encontra para a perda da
felicidade da comunidade originária. Na segunda, a política resulta do
desenvolvimento das técnicas e dos costumes, sendo uma convenção humana. Na
terceira, enfim, a política define a própria essência do homem, e a Cidade é
considerada uma instituição natural. Enquanto as duas primeiras reelaboram
racionalmente as explicações míticas, a terceira parte diretamente da definição da
natureza humana.
Finalidade da vida política
Para os gregos, a finalidade da vida política era a justiça na comunidade.
Convite à Filosofia
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A noção de justiça fora, inicialmente, elaborada em termos míticos, a partir de
três figuras principais: themis, a lei divina que institui a ordem do Universo;
cosmos, a ordem universal estabelecida pela lei divina; e dike, a justiça entre as
coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem cósmica. Pouco a
pouco, a noção de dike torna-se a regra natural para a ação das coisas e dos
homens e o critério para julgá-las.
A idéia de justiça se refere, portanto, a uma ordem divina e natural, que regula,
julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A justiça é a lei e a ordem
do mundo, isto é, da Natureza ou physis. Lei (nomos), Natureza (physis) e ordem
(cosmos) constituem, assim, o campo da idéia de justiça.
A invenção da política exigiu que as explicações míticas fossem afastadas –
themis e dike deixaram de ser vistas como duas deusas que impunham ordem e
leis ao mundo e aos seres humanos, passando a significar as causas que fazem
haver ordem, lei e justiça na Natureza e na polis. Justo é o que segue a ordem
natural e respeita a lei natural. Mas a polis existe por natureza ou por convenção
entre os homens? A justiça e a lei política são naturais ou convencionais? Essas
indagações colocam, de um lado, os sofistas, defensores do caráter convencional
da justiça e da lei, e, de outro lado, Platão e Aristóteles, defensores do caráter
natural da justiça e da lei.
Para os sofistas, a polis nasce por convenção entre os seres humanos quando
percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento.
Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nomos. A justiça é o
consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse
consenso.
Se a polis e as leis são convenções humanas, podem mudar, se mudarem as
circunstâncias. A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua a
comunidade política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da
ordem política é o debate para chegar ao consenso, isto é, a expressão pública da
vontade da maioria, obtida pelo voto.
Por esse motivo, os sofistas se apresentavam como professores da arte da
discussão e da persuasão pela palavra (retórica). Mediante remuneração,
ensinavam os jovens a discutir em público, a defender e combater opiniões,
ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as
questões.
A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia, conseguida na
discussão pública de opiniões e interesses contrários. O debate dos opostos, a
exposição persuasiva dos argumentos antagônicos, deviam levar à vitória do
interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.
Marilena Chauí
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Em oposição aos sofistas, Platão e Aristóteles afirmam o caráter natural da polis
e da justiça. Embora concordem sob esse aspecto, diferem no modo como
concebem a própria justiça.
Para Platão, os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura. Os humanos
são dotados de três almas ou três princípios de atividade: a alma concupiscente
ou desejante (situada no ventre), que busca satisfação dos apetites do corpo, tanto
os necessários à sobrevivência, quanto os que, simplesmente, causam prazer; a
alma irascível ou colérica (situada no peito), que defende o corpo contra as
agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de
nossa vida; e a alma racional ou intelectual (situada na cabeça), que se dedica ao
conhecimento, tanto sob a forma de percepções e opiniões vindas da experiência,
quanto sob a forma de idéias verdadeiras contempladas pelo puro pensamento.
Também a polis possui uma estrutura tripartite, formada por três classes sociais:
a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, que
garante a sobrevivência material da cidade; a classe militar dos guerreiros,
responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o
governo da cidade sob as leis.
Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma concupiscente (os apetites e
prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as. Também é injusto
quando a alma irascível (a agressividade) é mais poderosa do que a racional,
dominando-a. O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma racional
(pensamento e vontade) é mais forte do que as outras duas almas, impondo à
concupiscente a virtude da temperança ou moderação, e à irascível, a virtude da
coragem, que deve controlar a concupiscência. O homem justo é o homem
virtuoso; a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a
hierarquia das almas, a superior dominando as inferiores.
O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia, mas aplicada à comunidade.
Como realizar a Cidade justa? Pela educação dos cidadãos – homens e mulheres
(Platão não exclui as mulheres da política e critica os gregos por excluí-las).
Desde a primeira infância, a polis deve tomar para si o cuidado total das crianças,
educando-as para as funções necessárias à Cidade.
A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em
cujo término passam por uma seleção: as menos aptas serão destinadas à classe
econômica, enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos. Uma nova seleção
separa os jovens: os menos aptos serão destinados à classe militar enquanto os
mais aptos continuarão a ser educados. O novo ciclo educacional ensina as
ciências aos jovens e os submete a uma última seleção: os menos aptos serão os
administradores da polis enquanto os mais aptos prosseguirão os estudos.
Aprendem, agora, a Filosofia, que os transformará em sábios legisladores, para
que sejam a classe dirigente.
Convite à Filosofia
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– 494 –
A Cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas,
protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua
função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em
contrapartida, a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos
proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses
econômicos particulares -, ou na dos militares – que mergulharão a Cidade em
guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. Somente os
filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governála
com justiça.
Por seu turno, Aristóteles terá uma teoria política diversa da dos sofistas e de
Platão.
Para determinar o que é a justiça, diz ele, precisamos distinguir dois tipos de
bens: os partilháveis e os participáveis. Um bem é partilhável quando é uma
quantidade que pode ser dividida e distribuída – a riqueza é um bem partilhável.
Um bem é participável quando é uma qualidade indivisível, que não pode ser
dividida nem distribuída, podendo apenas ser participada – o poder político é um
bem participável. Existem, pois, dois tipos de justiça na Cidade: a distributiva,
referente aos bens econômicos; e a participativa, referente ao poder político. A
Cidade justa saberá distingui-las e realizar ambas.
A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que é devido e sua função é
dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. Suponhamos, por
exemplo, que a polis esteja atravessando um período de fome em decorrência de
secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuí-los a todos. Para ser
justa, a Cidade não poderá reparti-los de modo igual para todos. De fato, aos que
são pobres, deve doá-los, mas aos que são ricos, deve vendê-los, de modo a
conseguir fundos para aquisição de novos alimentos. Se doar a todos ou vender a
todos, será injusta. Também será injusta se atribuir a todos as mesmas
quantidades de alimentos, pois dará quantidades iguais para famílias desiguais,
umas mais numerosas do que outras.
A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais,
dando-lhes desigualmente os bens, implica afirmar que numa cidade onde a
diferença entre ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça, pois não dá a
todos o que lhes é devido como seres humanos. Na cidade injusta, em lugar de
permitirem aos pobres o acesso às riquezas (por meio de limitações impostas à
extensão da propriedade, de fixação da boa remuneração do trabalho dos
trabalhadores pobres, de impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas,
etc.), vedam-lhes tal direito. Ora, somente os que não são forçados às labutas
ininterruptas para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e
feliz. A Cidade injusta, portanto, impede que uma parte dos cidadãos tenha
assegurado o direito à vida boa.
Marilena Chauí
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– 495 –
A justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a
participação no poder. Essa definição depende daquilo que a Cidade mais
valoriza, os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos
cidadãos.
Há Cidades que valorizam a honra (isto é, a hierarquia social baseada no sangue,
na terra e nas tradições), julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só:
tem-se a monarquia, onde é justo que um só participe do poder. Há Cidades que
valorizam a virtude como excelência de caráter (coragem, lealdade, fidelidade ao
grupo e aos antepassados), julgando que o poder cabe aos melhores: tem-se a
aristocracia, onde é justo que somente alguns participem do poder. Há Cidades
que valorizam a igualdade (são iguais os que são livres), consideram a diferença
entre ricos e pobres econômica e não política, julgando que todos possuem o
direito de participar do poder: tem-se a democracia, onde é justo que todos
governem.
Os regimes políticos
Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras que designam os
regimes políticos: arche – o que está à frente, o que tem comando – e kratos – o
poder ou autoridade suprema. As palavras compostas com arche (arquia)
designam quantos estão no comando. As compostas com kratos (cracia)
designam quem está no poder.
Assim, do ponto de vista da arche, os regimes políticos são: monarquia ou
governo de um só (monas), oligarquia ou governo de alguns (oligos), poliarquia
ou governo de muitos (polos) e anarquia ou governo de ninguém (ana).
Do ponto de vista do kratos, os regimes políticos são: autocracia (poder de uma
pessoa reconhecida como rei), aristocracia (poder dos melhores), democracia
(poder do povo)xv.
Na Grécia e na Roma arcaicas predominaram as monarquias. No entanto, embora
os antigos reis afirmassem ter origem divina e vontade absoluta, a sociedade
estava organizada de tal forma que o governante precisava submeter as decisões a
um Conselho de Anciãos e à assembléia dos guerreiros ou chefes militares. Isso
fez com que, pouco a pouco, o regime se tornasse oligárquico, ficando nas mãos
das famílias mais ricas e militarmente mais poderosas, cujos membros se
consideravam os “melhores”, donde a formação da aristocracia.
O único regime verdadeiramente democrático foi o de Atenas. Nas demais
cidades gregas e em Roma, o regime político era oligárquico-aristocrático, as
famílias ricas sendo hereditárias no poder, mesmo quando admitiam a entrada de
novos membros no governo, pois as novas famílias também se tornavam
hereditárias.
Convite à Filosofia
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– 496 –
Devemos a Platão e a Aristóteles duas idéias políticas, elaboradas a partir da
experiência política antiga: a primeira delas é a distinção entre regimes políticos
e não-políticos; a segunda, a da transformação de um regime político em outro.
Um regime só é político se for instituído por um corpo de leis publicamente
reconhecidas e sob as quais todos vivem, governantes e súditos, governantes e
cidadãos. Em suma, é político o regime no qual os governantes estão submetidos
às leis. Quando a lei coincide com a vontade pessoal e arbitrária do governante,
não há política, mas despotismo e tirania. Quando não há lei de espécie alguma,
não há política, mas anarquia.
A presença ou ausência da lei conduz à idéia de regimes políticos legítimos e
ilegítimos. Um regime é legítimo quando, além de legal, é justo (as leis são feitas
segundo a justiça); um regime é ilegítimo quando a lei é injusta ou quando é
contrário à lei, isto é, ilegal, ou, enfim, quando não possui lei alguma.
Os regimes políticos se transformam em decorrência de mudanças econômicas –
aumento do número de ricos e diminuição do número de pobres, diminuição do
número de ricos e aumento do número de pobres – e de resultados de guerras –
conquistas de novos territórios e populações, submissão a vencedores que
conquistam a Cidade.
Presença ou ausência da lei, variação econômica e militar determinam, segundo
Platão e Aristóteles, a corrupção ou decadência dos regimes políticos: a
monarquia degenera em tirania, quando um só governa para servir aos seus
interesses pessoais; a aristocracia degenera em oligarquia dos muito ricos –
plutocracia – ou dos guerreiros – timocracia -, que também governam apenas em
seu interesse próprio; a democracia degenera em demagogia e esta, em anarquia.
Em geral, a anarquia leva à tirania, quando a sociedade, desgovernada, apela para
um homem superior aos outros no manejo das armas e dos argumentos, nele
buscando a salvação.
A tipologia platônico-aristotélica segundo o valor dos que participam do poder e
a teoria da decadência ou corrupção dos regimes políticos serão mantidas até o
século XVIII, aparecendo com vigor numa das obras políticas mais importantes
da Ilustração, O espírito das leis, de Montesquieu. Nessa obra, encontramos
também uma idéia desenvolvida por Aristóteles, para quem a variação dos
regimes políticos depende de dois fatores principais: a natureza ou índole do
povo e a extensão do território.
Assim, por exemplo, um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente
para a igualdade e a liberdade e cuja Cidade é de pequena extensão territorial,
naturalmente instituirá uma democracia e será mal-avisada se a substituir por um
outro regime. Em contrapartida, um povo cuja índole ou natureza tende
espontaneamente para a obediência a uma única autoridade e que vive num
território extenso, naturalmente instituirá a monarquia, sendo desavisada se a
Marilena Chauí
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– 497 –
substituir por outro regime político. Em outras palavras, os filósofos gregos
legaram ao Ocidente a idéia de regimes políticos naturais.
Ética e política
Se a política tem como finalidade a vida justa e feliz, isto é, a vida propriamente
humana digna de seres livres, então é inseparável da ética.
De fato, para os gregos, era inconcebível a ética fora da comunidade política – a
polis como koinonia ou comuni dade dos iguais -, pois nela a natureza ou essência
humana encontrava sua realização mais alta.
Quando estudamos a ética, vimos que Aristóteles distinguira entre teoria e prática
e, nesta, entre fabricação e ação, isto é, diferenciara poiesis e praxis. Vimos
também que reservara à praxis um lugar mais alto do que à fabricação, definindoa
como ação voluntária de um agente racional em vista de um fim considerado
bom. A praxis por excelência é a política. A esse respeito, na Ética a Nicômaco,
escreve Aristóteles:
Se, em nossas ações, há algum fim que desejamos por ele mesmo e os
outros são desejados só por causa dele, e se não escolhemos
indefinidamente alguma coisa em vista de uma outra (pois, nesse caso,
iríamos ao infinito e nosso desejo seria fútil e vão), é evidente que tal fim
só pode ser o bem, o Sumo Bem… Se assim é, devemos abarcar, pelo
menos em linhas gerais, a natureza do Sumo Bem e dizer de qual saber ele
provém. Consideramos que ele depende da ciência suprema e
arquitetônica por excelência. Ora, tal ciência é manifestamente a política,
pois é ela que determina, entre os saberes, quais são os necessários para as
Cidades e que tipos de saberes cada classe de cidadãos deve possuir… A
política se serve das outras ciências práticas e legisla sobre o que é preciso
fazer e do que é preciso abster-se; assim sendo, o fim buscado por ela deve
englobar os fins de todas as outras, donde se conclui que o fim da política
é o bem propriamente humano. Mesmo se houver identidade entre o bem
do indivíduo e o da Cidade, é manifestamente uma tarefa muito mais
importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade, pois
o bem não é seguramente amável mesmo para um indivíduo, mas é mais
belo e mais divino aplicado a uma nação ou à Cidade.
Platão identificara a justiça no indivíduo e a justiça na polis. Aristóteles
subordina o bem do indivíduo ao Bem Supremo da polis. Esse vínculo interno
entre ética e política significava que as qualidades das leis e do poder dependiam
das qualidades morais dos cidadãos e vice-versa, das qualidades da Cidade
dependiam as virtudes dos cidadãos. Somente na Cidade boa e justa os homens
poderiam ser bons e justos; e somente homens bons e justos são capazes de
instituir uma Cidade boa e justa.
Convite à Filosofia
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– 498 –
Romanos: a construção do príncipe
Após o primeiro período de sua história política, a época arcaica e lendária dos
reis patriarcais, semi-humanos e semidivinos, Roma torna-se uma república
aristocrática governada pelos grandes senhores de terras, os patrícios, e pelos
representantes eleitos pela plebe, os tribunos da plebe. O poder cabe a uma
instituição designada como o Senado e o Povo Romano, que pode, em certas
circunstâncias previstas na lei, receber os “homens novos”, isto é, os plebeus que,
por suas riquezas, casamentos ou feitos militares, passam a fazer parte do grupo
governante. Roma é uma república por três motivos principais: 1. o governo está
submetido a leis escritas impessoais; 2. a res publica (coisa pública) é o solo
público romano, distribuído às famílias patrícias, mas pertencentes legalmente a
Roma; 3. o governo administra os fundos públicos (recursos econômicos
provenientes de impostos, taxas e tributos), usando-os para a construção de
estradas, aquedutos, templos, monumentos e novas cidades, e para a manutenção
dos exércitos.
No centro do governo estavam dois cônsules, eleitos pelo Senado e pelo Povo
Romano, aos quais eram entregues dois poderes: o administrativo (gestão dos
fundos e serviços públicos) e o imperium, isto é, o poder judiciário e militar. O
Senado reservava para si duas autoridades: o conselho dos magistrados e a
autoridade moral sobre a religião e a política.
República oligárquica, Roma é uma potência com vocação militar. Em 50 anos,
conquista todo o mundo conhecido, com exceção da Índia e da China. Esse feito
é obra militar dos cônsules que, como dissemos, foram investidos com o
imperium (poder judiciário e militar). São imperadores.
Pouco a pouco, à medida que Roma se torna uma potência mundial, alguns dos
cônsules (Júlio César, Numa, Pompeu) reivindicam mais poder e mais
autoridade, que lhes vão sendo concedidos pelo Senado e pelo Povo Romano.
Gradualmente, sob a aparência de uma república aristocrática, instala-se uma
república monárquica, que se inicia com Júlio César e se consolidará nas mãos de
Augusto. Com ele, a monarquia irá perdendo o caráter republicano até substituir
o consulado, tornando-se senhorial e instituir-se como Principado. O príncipe é
imperador: chefe militar, detentor do poder judiciário, magistrado, senhor das
terras do império romano, autoridade suprema.
Essa mudança transparece na teoria política. Embora esta continue afirmando os
valores republicanos – importância das leis, do direito e das instituições públicas,
particularmente do Senado e Povo Romano – a preocupação dos teóricos estará
voltada para a figura do príncipe.
Inspirando-se no governante-filósofo de Platão, os pensadores romanos, como
Cícero e Sêneca, produzirão o ideal do príncipe perfeito ou do Bom Governo. A
nova teoria política mantém a idéia grega de que a comunidade política tem
como finalidade a vida boa ou a justiça, identificada com a ordem, harmonia ou
Marilena Chauí
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– 499 –
concórdia no interior da Cidade. No entanto, agora, a justiça dependerá das
qualidades morais do governante. O príncipe deve ser o modelo das virtudes para
a comunidade, pois ela o imitará.
Na verdade, os pensadores romanos viram-se entre duas teorias: a platônica, que
pretendia chegar à política legítima e justa educando virtuosamente os
governantes; e a aristotélica, que pretendia chegar à política legítima e justa
propondo qualidades positivas para as instituições da Cidade, das quais
dependiam as virtudes dos cidadãos. Entre as duas, os romanos escolheram a
platônica, mas tenderam a dar menor importância à organização política da
sociedade (as três classes platônicas) e maior importância à formação do príncipe
virtuoso.
O príncipe, como todo ser humano, é passional e racional, porém, diferentemente
dos outros humanos, não poderá ceder às paixões, mas apenas à razão. Por isso,
deve ser educado para possuir um conjunto de virtudes que são próprias do
governante justo, ou seja, as virtudes principescas. O verdadeiro vir (varão, em
latim) possui três séries de virtutes ou qualidades morais. A primeira delas é
comum a todo homem virtuoso, sendo constituída pelas quatro virtudes cardeais:
sabedoria ou prudência, justiça ou eqüidade, coragem e temperança ou
moderação. A segunda série constitui o conjunto das virtudes propriamente
principescas: honradez ou disposição para manter os princípios em todas as
circunstâncias, magnanimidade ou clemência, isto é, capacidade para dar punição
justa e para perdoar, e liberalidade, isto é, disposição para colocar sua riqueza a
serviço do povo. Finalmente, a terceira série de virtudes refere-se aos objetivos
que devem ser almejados pelo príncipe virtuoso: honra, glória e fama.
Cícero insiste em que o verdadeiro príncipe é aquele que nunca se deixa arrastar
por paixões que o transformem numa besta. Não pode ter a violência do leão nem
a astúcia da raposa, mas deve, em todas as circunstâncias, comportar-se como
homem dotado de vontade racional. O príncipe será o Bom Governo se for um
Bom Conselho, isto é, sábio, devendo buscar o amor e o respeito dos súditos.
Em contraponto ao Bom Governo, a teoria política ergue o retrato do tirano ou o
príncipe vicioso: bestial, intemperante, passional, injusto, covarde, impiedoso,
avarento e perdulário, sem honra, fama ou glória, odiado por todos e de todos
temeroso. Inseguro e odiado, rodeia-se de soldados, vivendo isolado em
fortalezas, temendo a rua e a corte.
A teoria do Bom Governo deposita na pessoa do governante a qualidade da
política e faz de suas virtudes privadas, virtudes públicas. O príncipe encarna a
comunidade e a espelha, sendo por ela imitado tanto na virtude quanto no vício.
Convite à Filosofia
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– 500 –
O poder teológico-político: o cristianismo
Para compreendermos as teorias políticas cristãs precisamos ter em mente as
duas tradições que o cristianismo recebe como herança e sobre as quais elaborará
suas próprias idéias: a hebraica e a romana.
Os hebreus, embora tenham conhecido várias modalidades de governo –
patriarcas, juízes, reis -, deram ao poder, sob qualquer forma em que fosse
exercido, uma marca fundamental irrevogável: o caráter teocrático. Em outras
palavras, consideravam eles que o poder, em sua plenitude e verdade, pertence
exclusivamente a Deus e que este, por meio dos anjos e dos profetas, elege o
dirigente ou os dirigentes. O poder (kratos) pertence a Deus (theos), donde:
teocracia. Além disso, os hebreus se fizeram conhecer não só como Povo de
Deus, mas também como Povo da Lei (a lei divina doada a Moisés e codificada
por escrito). A legalidade era algo tão profundo que, quando o cristianismo se
constitui como nova religião, fala-se na Antiga Lei (a aliança de Deus com o
povo, prometida a Noé, Abraão e dada a Moisés) e na Nova Lei (a nova aliança
de Deus com o povo, através do messias Jesus).
Do lado romano, o processo que viemos descrevendo acima prosseguiu e, no
período em que o cristianismo se expande e se encontra em vias de tornar-se
religião oficial do Império Romano, o príncipe já se encontra investido de novos
poderes. Sendo Roma senhora do Universo, o imperador romano tenderá a ser
visto como senhor do Universo, ocupando o topo da hierarquia do mundo, em
cujo centro está Roma, a Cidade Eterna.
Ao imperador – ou ao césar xvi – cabe manter a harmonia e a concórdia no mundo,
a pax romana, garantida pela força das armas. Com isso, o príncipe passou a
enfeixar em suas mãos todos os poderes, que antes cabiam ao Senado e Povo
Romano, foi sendo sacralizado, à maneira do déspota oriental, até ser
considerado divino, sendo-lhe atribuídos poderes que pertenciam a Júpiter:
fundador do povo, restaurador da ordem universal e salvador do Universo.
Para cumprir suas tarefas, o poder imperial centralizado e hierarquizado,
desenvolve um complexo sistema estatal em que prevalece o poderio dos
funcionários imperiais (civis e militares), que se estende como uma rede
intrincada de pequenos poderes por todo o território do Império Romano.
A elaboração da teoria política cristã como teologia política resultará da
apropriação dessa dupla herança pelo poder eclesiástico.
A instituição eclesiástica
Quando estudamos a ética, vimos que o cristianismo, diferentemente da maioria
das religiões antigas, não surge como religião nacional ou de um povo ou de um
Estado determinados. No entanto, ele deveria ter sido uma religião nacional, uma
vez que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico. Em
outras palavras, se Jesus tivesse sido vitorioso, teria sido capitão, rei e sacerdote,
Marilena Chauí
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– 501 –
pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado. Derrotado pela
monarquia judaica, que usara o poder do Império Romano para julgá-lo e
condená-lo, Jesus ressurge (ressuscita) como figura puramente espiritual, rei de
um reino que não é deste mundo. O cristianismo se constitui, portanto, à margem
do poder político e contra ele, pois os “reinos deste mundo” serão, pouco a
pouco, vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano.
Separado da ordem política estatal, o cristianismo será organizado de maneira
semelhante a outras crenças religiosas não oficiais: tomará a forma de uma seita
religiosa. Nessa época, seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam
a polis como referência – pois Roma tudo dominava imperialmente – não podiam
mais dirigir-se a uma comunidade política determinada, a um povo determinado,
e por isso dirigiam-se ao ser humano em geral, sem distinção de nação ou povo.
O poder imperial romano criara, sem o saber, a idéia do homem universal, sem
pátria e sem comunidade política. O cristianismo será uma seita religiosa dirigida
aos seres humanos em geral, com a promessa de salvação individual eterna. À
idéia política da lei escrita e codificada em regras objetivas contrapõe a idéia de
lei moral invisível (o dever à obediência a Deus e o amor ao próximo), inscrita
pelo Pai no coração de cada um.
Todavia, a seita cristã irá diferenciar-se de outras porque a herança judaica – dos
primeiros apóstolos – e romana – dos primeiros padres – conduzirá à idéia de
povo (de De us) e de lei (de Deus), isto é, a duas idéias políticas. A seita cristã é
uma comunidade cujos membros formam o povo de Deus sob a lei de Deus.
Essa comunidade é feita de iguais – os filhos de Deus redimidos pelo Filho -, que
recebem em conjunto a Palavra Sagrada e, pelo batismo e eucaristia, participam
da nova lei – a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho. A
comunidade é a ekklesia, isto é, a assembléia dos fiéis, a Igreja. E esta é
designada como reino de Deus. Povo, lei, assembléia e reino: essas palavras
indicam, por si mesmas, a vocação política do cristianismo, pois escolhe para
referir-se a si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana.
A ekklesia organiza-se a partir de uma autoridade constituída pelo próprio Cristo
quando, na última ceia, autoriza os apóstolos a celebrar a eucaristia (o pão e o
vinho como símbolos do corpo e sangue do messias) e, no dia de Pentecostes,
ordena-lhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa Nova (o
Evangelho).
A autoridade apostólica não se limita a batismo, eucaristia e evangelização. Jesus
deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e dele desligá-los, quando
lhes disse, através de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha
igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do
reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu, o que desligares na Terra será
desligado no Céu”xvii. Está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse
poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus; e é
Convite à Filosofia
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– 502 –
superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano,
frágil e perecível, criado por sedução demoníaca.
A ekklesia, comunidade de bons e justos, separada do Estado e do poder
imperial, organiza-se com normas e regras que estabelecem hierarquias de
autoridade e de poder, formando o que o romano santo Agostinho chamará de
Civitas Dei, a Cidade de Deus, oposta à Cidade dos Homens, injusta e satânica,
isto é, Roma.
Essa instituição eclesiástica conseguirá converter o imperador Constantino,
transformará o cristianismo em religião oficial do Império Romano e absorverá a
estrutura militar e burocrática do Império em sua própria organização.
O poder teológico-político
O poderio da Igreja cresce à medida que se esfacela e desmorona o Império
Romano. Dois motivos levam a esse crescimento: em primeiro lugar, a expansão
do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos, realizada pelos
padres nos territórios do Império Romano e para além deles; em segundo lugar,
porque o esfacelamento de Roma, do qual resultará, nos séculos seguintes, a
formação sócio-econômica conhecida como feudalismo, fragmentou a
propriedade da terra (anteriormente, tida como patrimônio de Roma e do
imperador) e fez surgirem pequenos poderes locais isolados, de sorte que o único
poder centralizado e homogeneamente organizado era o da Igreja.
A Igreja (tanto em Roma quanto em Bizâncio, tanto no Ocidente quanto no
Oriente) detém três poderes crescentes, à medida que o Império decai: 1. o poder
religioso de ligar os homens a Deus e dele desligá-los; 2. o poder econômico
decorrente de grandes propriedades fundiárias acumuladas no correr de vários
séculos, seja porque os nobres do Império, ao se converterem, doaram suas terras
à instituição eclesiástica, seja porque esta recebera terras como recompensa por
serviços prestados aos imperadores; 3. o poder intelectual, porque se torna
guardiã e intérprete única dos textos sagrados – a Bíblia – e de todos os textos
produzidos pela cultura greco-romana – direito, filosofia, literatura, teatro,
manuais de técnicas, etc. Saber ler e escrever tornou-se privilégio exclusivo da
instituição eclesiástica. Será a Igreja, portanto, a formuladora das teorias políticas
cristãs para os reinos e impérios cristãos. Essas teorias elaborarão a concepção
teológico-política do poder, isto é, o vínculo interno entre religião e política.
As teorias teológico-políticas
Na elaboração da teologia política, os teóricos cristãos dispunham de três fontes
principais: a Bíblia latina, os códigos dos imperadores romanos, conhecidos
como Direito Romano, e as idéias retiradas de algumas poucas obras conhecidas
de Platão, Aristóteles e sobretudo Cícero.
De Platão, vinha a idéia da comunidade justa, organizada hierarquicamente e
governada por sábios legisladores. De Aristóteles, vinha a idéia de que a
Marilena Chauí
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finalidade do poder era a justiça, como bem supremo da comunidade. De Cícero,
a idéia do Bom Governo do príncipe virtuoso, espelho para a comunidade. De
todos eles, a idéia de que a política era resultado da Natureza e da Razão.
No entanto, essas idéias filosóficas precisavam ser conciliadas com a outra fonte
do conhecimento político, a Bíblia. E a conciliação não era fácil, uma vez que a
Escritura Sagrada não considera o poder como algo natural e originado da razão,
mas proveniente da vontade de Deus, sendo, portanto, teocrático.
A Bíblia, como se sabe, é um conjunto de textos de proveniências, épocas e
autores muito diferentes, escritos em várias línguas – hebraico, aramaico, grego,
etc. – e formando dois grupos principais, o Antigo e o Novo Testamento. Ao ser
traduzida para o latim, os tradutores só dispunham da língua culta romana e dos
textos que formavam o chamado Direito Romano. A tradução verteu os
diferentes textos para a linguagem latina clássica, fazendo prevalecer a língua
jurídica e legal romana, combinando, assim, a forte tradição legalista judaica e a
latina. Essa Bíblia latinizada servirá de base para as teorias políticas e fornecerá
os critérios para decidir o que aceitar e o que recusar das idéias de Platão,
Aristóteles e Cícero, combinando de maneira complexa e, às vezes, pouco
aceitável, as concepções filosóficas e as teocráticas.
As teorias do poder teológico-político, embora tenham recebido diferentes
formulações no correr da Idade Média, variando conforme as condições
históricas exigiam, apresentavam os seguintes pontos em comum:
? o poder é teocrático, isto é, pertence a Deus e dele vem aos homens por ele
escolhidos para representá-lo. O fundamento dessa idéia é uma passagem do
Antigo Testamento onde se lê: “Todo poder vem do Alto / Por mim reinam os
reis e governam os príncipes”xviii. O poder é um fator divino ou uma graça divina
e o governante não representa os governados, mas representa Deus perante os
governados. O regime político é a monarquia teocrática em que o monarca é rei
pela graça de Deus. A comunidade política se forma pelo pacto de submissão
dos súditos ao rei;
? o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei. O rei é,
portanto, a fonte da lei e da justiça – afirma-se que é pai da lei e filho da justiça.
Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus, está acima das leis e não
pode ser julgado por ninguém, tendo poder absoluto. O fundamento dessa idéia é
retirado de um preceito do Direito Romano que afirma: “Ninguém pode dar o que
não tem e ninguém pode tirar o que não deu”.
Se não foi o povo quem deu o poder ao rei, pois o povo não tem o poder, uma
vez que este a Deus pertence, o povo também não pode julgar o rei nem tirar-lhe
o poder. Se um rei for tirânico e injusto, nem assim os súditos podem resistir-lhe
nem depô-lo, pois ele está no poder pela vontade de Deus, que, para punir os
pecados do povo, o faz sofrer sob um tirano. Este é um flagelo de Deus. Porque o
Convite à Filosofia
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poder vem do alto, porque o rei é pai da lei e está acima dela, e porque os súditos
fizeram o pacto de submissão, o rei é intocável;
? o príncipe cristão deve possuir o conjunto das virtudes cristãs – fé, esperança e
caridade – e o conjunto das virtudes definidos por Cícero e Sêneca como próprias
do Bom Governo. Sendo o espelho da comunidade, em sua pessoa devem estar
encarnadas as qualidades cristãs que a comunidade deve imitar.
Mesmo que considere a política algo natural – como dizia Aristóteles e dirão
vários teólogos, como são Tomás de Aquino – e mesmo que se considere que a
comunidade política é obra da razão – como diziam Platão e Cícero e afirmarão
vários teólogos, como Guilherme de Ockham -, ainda assim, a finalidade
suprema do poder político, isto é, o bem e a justiça, não são estritamente terrenos
ou temporais, mas espirituais. O príncipe é responsável pela finalidade mais alta
da política: a salvação eterna de seus súditos;
? a comunidade e o rei formam o corpo político: a cabeça é a coroa ou o rei, o
peito é a legislação sob a guarda dos magistrados e conselheiros do rei, os
membros superiores são os senhores ou barões que formam os exércitos do rei e
a ele estão ligados por juramento de fidelidade ou de vassalagem, e os membros
inferiores são o povo que trabalha para o sustento do corpo político. A polis
platônica é, assim, transformada no corpo político do rei ;
? a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus e natural. O
mundo é um cosmos, isto é, uma ordem fixa de lugares e funções que cada ser
(minerais, vegetais, animais e humanos) ocupa necessariamente e nos quais
realiza sua natureza própria. Os seres do cosmos estão distribuídos em graus e o
grau inferior deve obediência ao superior, submetendo-se a ele.
No caso da comunidade política, a hierarquia obedece aos critérios das funções e
da riqueza, formando ordens sociais e corpos ou corporações que são órgãos do
corpo político do rei. Não existe a idéia de indivíduo, mas de ordem ou
corporação a que cada um pertence por vontade divina, por natureza e por
hereditariedade, ninguém podendo subir ou descer na hierarquia a não ser por
vontade expressa do rei. Cada um nasce, vive e morre no mesmo lugar social,
transmitindo-o aos descendentes.
Esse papel central que as teorias conferem à idéia de cosmos hierárquico
responde a três exigências práticas: manter a concepção imperial romana e
eclesiástica, manter a concepção teocrática judaica e, sobretudo, oferecer uma
garantia teórico-política a uma sociedade fragmentada em propriedades isoladas
e espalhadas pelo antigo território do Império para as quais já não existe a
referência urbana de Roma;
? no topo da hierarquia encontram-se o papa e o imperador. O primeiro exige o
poder espiritual, o segundo, o temporal. Dada a ruralização da vida econômicosocial
e sua fragmentação, cada região possui um conjunto de senhores que
Marilena Chauí
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escolhe um rei entre seus pares, garantindo-lhe – e à sua dinastia – a permanência
indefinida no poder. Este só passa a outro rei se o reinante morrer sem herdeiro
do sexo masculino, ou se trair seus pares e for por eles deposto, ou se houver
uma guerra na qual seja derrotado e o vencedor tenha força para reivindicar o
poder régio. A assembléia dos reis subordina-se ao Grande Rei ou imperador da
Europa (Sacro Império Romano-Germânico), que possui o poder teocrático, isto
é, ele é escolhido por Deus e não pelos outros reis;
? a justiça, finalidade da comunidade cristã, é a hierarquia de submissão e
obediência do inferior ao superior, pois é essa a ordem natural criada pela lei
divina. A vida temporal é inferior à vida espiritual e por isso a finalidade maior
do governante é a salvação da alma imortal de seus súditos, pela qual responderá
perante Deus.
Auctoritas e potestas
O vocabulário da política romana distinguia auctoritas e potestas: a primeira é o
poder no sentido pleno, isto é, a autoridade para promulgar as leis e fazer a
justiça; a segunda é o poder de fato para administrar coisas e pessoas. A primeira
é fundadora da comunidade política; a segunda, a atividade executiva. A vida
política cristã, durante toda a Idade Média, viu-se envolvida no conflito entre
esses dois poderes, pois é evidente que um deles está subordinado ao outro e que
a potestas e inferior à auctoritas.
No início da Idade Média não há conflito. O papa possui a autoridade espiritual,
voltada para a salvação, enquanto os reis possuem a autoridade legal e a potência
administrativa temporais. Pouco a pouco, porém, o conflito entre as duas
autoridades se instala, expressando-se na chamada querela das investiduras.
Padres e bispos são administradores da Igreja no interior dos reinos e do conjunto
formado por eles, o Sacro Império Romano-Germânico. Se são administradores,
devem ser investidos em seus cargos pelo rei e pelo imperador. Isso significa,
porém, que reis e imperadores passam a intervir na autoridade da Igreja e do
papa, o que, para ambos, é inaceitável. Os juristas eclesiásticos elaboram uma
legislação, o direito canônico, para garantir o poder do papa na investidura de
padres e bispos. Essa elaboração, gradualmente, leva à teoria do poder papal
como autoridade suprema à qual deve submeter-se o imperador.
As teorias teológico-políticas foram elaboradas para resolver dois conflitos que
atravessam toda a Idade Média: o conflito entre o papa e o imperador, de um
lado, e entre o imperador e as assembléias dos barões, de outro.
O conflito papa-imperador é conseqüência da concepção teocrática do poder. Se
Deus escolhe quem deverá representá-lo, dando o poder ao escolhido, quem é
este: o papa ou o imperador?
A primeira solução encontrada, após a querela das investiduras, foi trazida pelos
juristas de Carlos Magno, com a teoria da dupla investidura: o imperador é
Convite à Filosofia
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investido no poder temporal pelo papa que o unge e o coroa; o papa recebe do
imperador a investidura da espada, isto é, o imperador jura defender e proteger a
Igreja, sob a condição de que esta nunca interfira nos assuntos administrativos e
militares do império. Assim, o imperador depende do papa para receber o poder
político, mas o papa depende do imperador para manter o poder eclesiástico.
O conflito entre o imperador e as assembléias dos barões e reis diz respeito à
escolha do imperador. Este conflito revela o problema de uma política fundada
em duas fontes antagônicas. De fato, barões e reis invocam a chamada Lei Régia
Romana, segundo a qual o governante recebe do povo o poder, sendo, portanto,
ocupante eleito do poder. Barões e reis afirmam que são os instituidores do
imperador. Este, porém, invoca a Bíblia e a origem teocrática do poder,
afirmando que seu poder não vem dos barões e reis, mas de Deus.
A solução será trazida pela teoria que distingue entre eleição e unção. O
imperador, de fato, é eleito pelos pares para o cargo, mas só terá o poder através
da unção com óleos santos – afirma-se que é ungido com o mesmo óleo que
ungiu Davi e Salomão – e quem unge o imperador é a Igreja, isto é, o papa.
Como se observa, a teoria da dupla investidura e da distinção entre eleição e
unção deixa o imperador à mercê do papa. Para fortalecer o imperador contra o
papa, os reis e os barões, é elaborada uma teoria, que, mais tarde, sustentará as
teorias da monarquia absoluta por direito divino. Trata-se da teologia política dos
dois corpos do rei (isto é, do imperador).
Um rei-pela-graça-de-Deus é a imitação de Jesus Cristo. Jesus possui duas
naturezas: a humana, mortal, e a mística ou divina, imortal. Como Jesus, o rei
tem dois corpos: um corpo humano, que nasce, vive, adoece, envelhece e morre,
e um corpo místico, perene e imortal, seu corpo político. O corpo político do rei
não nasce, nem adoece, envelhece ou morre. Por isso, ninguém, a não ser Deus,
pode lhe dar esse corpo, e ninguém, a não ser Deus, pode tirar-lhe tal corpo. Não
o recebe nem dos barões e reis, nem do papa, e não pode ser-lhe tirado pelos reis,
pelos barões ou pelo papa.
O que é o corpo místico-político do rei? A coroa, o cetro, o manto, a espada, o
trono, as terras, as leis, os impostos e tributos e seus descendentes ou sua
dinastia. Filho da justiça, pai da lei, marido da terra e de tudo o que nela existe, o
rei é inviolável e eterno porque é imitação do Cristo e imagem de Deus. Nem
eleito nem deposto por ninguém, o poder político do rei o coloca fora e acima da
comunidade, tornando-o transcendente a ela.
Em relação ao papa, a teoria dos dois corpos do rei dá ao imperador uma força
teológica semelhante àquela que a doação das Chaves do Reino dava ao Vigário
de Cristo. Em relação aos reis e barões, a teoria dá ao imperador a inviolabilidade
do cargo e, mais do que isso, faz com que seja ele o doador de poder a seus
inferiores. Reis e barões terão poder por um favor do imperador, assim como este
recebe poder por um favor de Deus.
Marilena Chauí
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O dualismo do poder
No final da Idade Média, sobretudo com a retomada das obras de Aristóteles
pelos teólogos, haverá um esforço para separar a Cidade de Deus – a Igreja – e a
Cidade dos Homens – a comunidade política.
Considera-se que a primeira foi instituída e fundada diretamente por Deus com a
doação das Chaves do Reino aos apóstolos, mas a segunda foi instituída ou
fundada pela Natureza, que fez o homem um ser racional e um animal político.
Sem dúvida, a boa cidade é a cidade dos homens cristã, em harmonia com a
Cidade de Deus, mas as instituições políticas devem ser consideradas humanas,
criadas em concordância com a ordem e a lei naturais, derivadas da lei divina
eterna.
Um dos teóricos mais importantes da naturalidade da política é o teólogo são
Tomás de Aquino, para quem, sendo o homem um animal social, a sociabilidade
natural já existia no Paraíso, antes da queda e da expulsão dos seres humanos.
Após o pecado original, os seres humanos não perderam sua natureza sociável e,
por isso, naturalmente organizaram-se em comunidades, deram-se leis e
instituíram as relações de mando e obediência, criando o poder político.
Diferentemente de santo Agostinho, para quem o pecado tornara o homem
perverso e violento, injusto e fundador da Cidade dos Homens, injusta como ele,
para são Tomás, os humanos perderam a inocência original, mas não perderam a
natureza original que lhes fora dada por Deus. Por esse motivo, neles permaneceu
o senso de justiça, entendida como o dever de dar a cada um o que lhe é devido, e
com ela fundaram a comunidade política.
A finalidade da comunidade política é a ordem – o inferior deve obedecer ao
superior – e a justiça – dar a cada um segundo suas necessidades e méritos.
Ordem e justiça definem a comunidade política como o único instrumento
humano legítimo para assegurar o bem comum.
Na mesma linha de separação entre poder espiritual da Igreja e poder temporal da
comunidade política, encontra-se o teólogo inglês Guilherme de Ockham, que,
para melhor definir a justiça e o bem comum, introduz a idéia de direito
subjetivo natural .
Para que a comunidade política possa realizar a justiça, isto é, dar a cada um o
que lhe é devido segundo suas necessidades e seus méritos, é preciso que o
legislador e o magistrado possuam um critério ou uma medida que defina o justo.
Essa medida é o direito subjetivo natural de cada um e de todos os homens como
o direito à vida, à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à
garantia da vida e da consciência.
Com são Tomás e Ockham, novas idéias são trazidas à teoria política, ainda que
continue teológica, isto é, referida à vontade suprema de Deus. Diante da tradição
teocrática medieval, são novas as idéias de comunidade política natural, lei
Convite à Filosofia
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humana política e direito natural dos indivíduos como sujeitos dotados de
consciência e de vontade.
Os dois teólogos mantêm a idéia de bom governo do príncipe cristão virtuoso e a
de que a monarquia é a forma natural e melhor de governo, a mais adequada para
realizar a justiça como bem comum. Conservam também a idéia de hierarquia
natural criada pela lei divina eterna e concretizada pela lei natural. Finalmente,
introduzem o primeiro esboço do que viria a ser conhecido, com a Reforma
Protestante, como o direito de resistência dos súditos do tirano.
Os governados não podem depor nem matar o tirano, mas podem resistir a ele,
buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade, forçando-o a abdicar
do poder. Um dos instrumentos legais mais importantes para isso é a idéia de
direito subjetivo natural: quando este é violado pelo governante, o governo se
torna ilegítimo, o pacto de submissão perde a validade e o governante deve
abdicar do poder.
Marilena Chauí
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Capítulo 9
As filosofias políticas – 2ª parte
O ideal republicano
À volta dos castelos feudais, durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou
burgos. Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem
– juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia
proteger o vassalo -, nos burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma
outra organização social, a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros,
médicos, arquitetos, comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os
membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca.
Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas, era possível, a
partir de regras convencionadas entre seus membros, ascender na hierarquia e,
externamente, nas relações com outras corporações, todos eram considerados
livres e iguais. As corporações fazem surgir uma nova classe social que, nos
séculos seguintes, irá tornar-se economicamente dominante e buscará também o
domínio político: a burguesia, nascida nos burgos.
Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do
Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em
desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam poderosas
as corporações e as famílias de comerciantes, enquanto o poderio agrário dos
barões começa a diminuir.
As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo
comercial ou mercantil. Para desenvolvê -lo, não podem continuar submetidas aos
padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por
franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a
nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades
desejam independência em face de barões, reis, papas e imperadores.
Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura
greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscitam um ideal
político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de
papas e imperadores.
Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera
reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes
antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos
houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia
Convite à Filosofia
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ser pensado, dito e feito. Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricos, tratados
de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela
cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado.
Esparta, Atenas e Roma são tomadas como exemplos da liberdade republicana.
Imitá-las e valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida
espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Fala-se, agora, na liberdade
republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana.
Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o
pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel.
Antes de “O príncipe”
Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e
renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a
relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade
que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram
evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um fator divino; no entanto,
embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra idéia cristã, qual seja,
a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de
acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de
teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política.
Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e
considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos
traços comuns a todas elas:
? encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política.
Em outras palavras, para uns, o fundamento da política encontra-se em Deus
(seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina,
que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza,
isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para
alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe uma racionalidade que
governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política.
Há, pois, algo – Deus, Natureza ou razão – anterior e exterior à política, servindo
de fundamento a ela;
? afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja
finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa
comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos
como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem, a qualquer
preço, ser afastados da comunidade e do poder;
? assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é,
no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da
comunidade;
Marilena Chauí
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? classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos,
colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e
identificando com os segundos o poder obtido por conquista e usurpação,
denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à
vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso.
Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora
e revolucionária.
Maquiavélico, maquiavelismo
Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo. São
usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política quanto aos políticos,
quanto a certas atitudes das pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a
uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa
professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc.).
Quando ouvimos ou empregamos essas expressões? Sempre que pretendemos
julgar a ação ou a conduta de alguém desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente
malévolo, que brinca com sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a
eles promessas que sabe que não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio
proveito.
Falamos num “poder maquiavélico” para nos referirmos a um poder que age
secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades
desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa
meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras
do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos
sua própria ruína e destruição.
Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso
e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazerem exatamente
o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Como se nota,
maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é
considerado diabólico.
Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem
mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome, fale
em maquiavélico e maquiavelismo?
A revolução maquiavelista
Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para
formular teorias políticas, e, diferentemente dos contemporâneos renascentistas,
que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas,
Maquiavel parte da experiência real de seu tempo.
Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, via as lutas européias
de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a
Convite à Filosofia
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ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo viu a
fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja. A
compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o
conduziram à idéia de que uma nova concepção da sociedade e da política
tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença.
Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas
novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam
compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos
acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.
Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos
quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura
maquiavelista:
1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus,
Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente
dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e
o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia
que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da
ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas
internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe
identidade. Esse pólo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais
e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A
política resulta da ação social a partir das divisões sociais;
2. Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o
bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a
divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida
e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada
para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é
uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar,
oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares
fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade.
A finalidade política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e
cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a
tomada e manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar
e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes
são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera
do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos
grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da
força transformada em lógica do poder e da lei;
3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso,
portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O
príncipe precisa ter virtu, mas esta é propriamente política, referindo-se às
Marilena Chauí
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qualidades do dirigente para tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva
usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o
governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma
que o príncipe não pode ser odiado.
Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido – o que só é
possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser
amado, pois isto o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece
apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá na
qualidade das instituições que soube criar e manter e na capacidade que tiver para
enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;
4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia,
aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania,
oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o
hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político –
tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver – poderá ser legítimo ou
ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a
ilegitimidade, é a liberdade.
Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é
maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é
legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas
sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que
rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a
serviço do povo. O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode
ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes
políticos será legítimo se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é,
só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses
de um particular ou de um grupo de particulares.
Dissemos que a tradição grega tornara ética e política inseparáveis, que a tradição
romana colocara essa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do
governante e que a tradição cristã transformara a pessoa política num corpo
místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana.
Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política,
orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de idéias e imagens é
demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção maquiavelista que
melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso.
Quando estudamos a ética, vimos que a questão central posta pelos filósofos
sempre foi: O que está e o que não está em nosso poder? Vimos também que
“estar em nosso poder” significava a ação voluntária racional livre, própria da
virtude, e “não estar em nosso poder” significava o conjunto de circunstâncias
externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação. Vimos,
ainda, que esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de
Convite à Filosofia
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nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna. A oposição
virtude-fortuna jamais abandonou a ética e, como esta surgia inseparável da
política, a mesma oposição se fez presente no pensamento político. Neste, o
governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da
caprichosa e inconstante fortuna.
Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido inteiramente novo.
A virtu do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele
oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtu é a capacidade do príncipe para ser
flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna.
Em outras palavras, um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo
com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu
alguma.
Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas,
ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em
certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões
deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à
vontade dos outros, em algumas, ser inflexível. O ethos ou caráter do príncipe
deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.
A fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferecese
como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la.
Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a
inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e
capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para
agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.
A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua
vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser
virtu política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores
políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos
padrões que regulam a moralidade privada dos indiví duos. O ethos político e o
ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo
que mascara a lógica real do poder.
Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da
religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como
“maquiavélico”. As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século
XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando
esta é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da
razão e da Natureza.
Para o Ocidente cristão do século XVI, o príncipe maquiavelista, não sendo o
bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. À sacralização do
poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa
Marilena Chauí
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imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos
maquiavélico e maquiavelismo designam.
O mundo desordenado
A obra de Maquiavel, criticada em toda a parte, atacada por católicos e
protestantes, considerada atéia e satânica, tornou-se, porém, a referência
obrigatória do pensamento político moderno. A idéia de que a finalidade da
política é a tomada e conservação do poder e que este não provém de Deus, nem
da razão, nem de uma ordem natural feita de hierarquias fixas exigiu que os
governantes justificassem a ocupação do poder. Em alguns casos, como na
França e na Prússia, surgirá a teoria do direito divino dos reis, baseada na
reformulação jurídica da teologia política do “rei pela graça divina” e dos “dois
corpos do rei”. Na maioria dos países, porém, a concepção teocrática não foi
mantida e, partindo de Maquiavel, os teóricos tiveram que elaborar novas teorias
políticas.
Para compreendermos os conceitos que fundarão essas novas teorias precisamos
considerar alguns acontecimentos históricos que mudaram a face econômica e
social da Europa, entre os séculos XV e XVII.
Já mencionamos, ao tratar do ideal republicano, o novo papel das cidades e da
nova classe social – a burguesia – no plano econômico, social e político. Outros
fatores, além do crescimento das corporações de ofício e do comércio, são
também importantes para o fortalecimento dessa nova classe:
? a decadência e ruína de inúmeras famílias aristocráticas, cujas riquezas foram
consumidas nas guerras das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram
abandonadas porque seus nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram
sem deixar herdeiros. Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de
armamentos e pagamentos de exércitos para as Cruzadas, suas terras sendo
confiscadas pelo rei para cobrir as dívidas. Os servos da gleba, que trabalhavam
nessas propriedades, bem como os camponeses pobres e livres, que as
arrendavam em troca de serviços, migravam para as cidades, tornando-se
membros das corporações de ofícios ou servos urbanos de famílias nobres que
haviam passado a dedicar-se ao comércio;
? a decadência agrária foi acelerada também por uma grande peste que assolou a
Europa no final da Idade Média – a chamada peste negra -, que dizimou gente,
gado e colheitas, arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as
cidades;
? a vida urbana provocou o crescimento de atividades artesanais e, com elas, o
desenvolvimento comercial para compra e venda dos produtos, criando
especialidades regionais e o intercâmbio comercial em toda a Europa;
? as grandes rotas do comércio com o Oriente, dominadas, primeiro, pelas
cidades italianas e, depois, pelos impérios ultramarinos de Portugal, Espanha,
Convite à Filosofia
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– 516 –
Inglaterra e França, deram origem a um novo tipo de riqueza, o capital, baseado
no lucro advindo da exploração do trabalho dos homens pobres e livres que
haviam migrado para as cidades e na exploração do trabalho escravo de nativos e
negros nas Américas.
Nas cidades, primeiro, e no campo, depois, a miséria e as péssimas condições de
trabalho e de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos. No campo, tais
revoltas foram um dos efeitos da Reforma Protestante, que acusara a Igreja e a
nobreza de cometerem o pecado da ambição, explorando e oprimindo os pobres.
Nas cidades, as revoltas populares eram também um efeito da Reforma
Protestante, que havia declarado a igualdade dos seres humanos, afirmando como
principal virtude o trabalho e principal vício a preguiça.
O desenvolvimento econômico das cidades, o surgimento da burguesia
comerciante ou mercantil, o crescimento da classe dos trabalhadores pobres, mas
livres (isto é, sem laços de servidão com os senhores feudais), a Reforma
Protestante que questionara o poder econômico e político da Igreja, as revoltas
populares, a guerra entre potências pelo domínio dos mares e dos novos
territórios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza, a ascensão de
famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os nobres, todos
esses fatos evidenciavam que a idéia cristã, herdada do Império Romano e
consolidada pela Igreja Romana, de um mundo constituído naturalmente por
hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade.
A nova situação histórica fazia aparecer dois fatos impossíveis de negar:
1. a existência de indivíduos – um burguês e um trabalhador não podiam invocar
sangue, família, linhagem e dinastia para explicar por que existiam e por que
haviam mudado de posição social, mas só podiam invocar a si mesmos como
indivíduos;
2. a existência de conflitos entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de
riquezas, cargos, postos e poderes anulava a imagem da comunidade cristã, una,
indivisa e fraterna.
Os teóricos precisavam, portanto, explicar o que eram os indivíduos e por que
lutavam mortalmente uns contra os outros, além de precisarem oferecer teorias
capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais. Em outras palavras, foram
forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política. Por que indivíduos
isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos independentes aceitam
submeter-se ao poder político e às leis?
A resposta a essas duas perguntas conduz às idéias de Estado de Natureza e
Estado Civil.
Marilena Chauí
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Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil
O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação pré-social
na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais
concepções do Estado de Natureza:
1. a concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em Estado de
Natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra
de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo
e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns
dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam.
Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que
vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a
posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do
mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;
2. a concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de
Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a
Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o
canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no
qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina
quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu,
isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que
corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra
todos.
O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau
evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a
lei da selva ou o poder da força. Para cessar esse estado de vida ameaçador e
ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil,
criando o poder político e as leis.
A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um
contrato social , pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse
natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o
soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O
contrato social funda a soberania.
Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos
invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém
pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao
soberano pelo povo ” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.
Parte-se do conceito de direito natural : por natureza, todo indivíduo tem direito
à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por
natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros
mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem
Convite à Filosofia
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validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e
livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.
A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato
social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos
naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um
terceiro; e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano
algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural,
os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um
pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.
Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto,
passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação
humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são
pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral
coletivo ou Estado.
A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande
importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em
sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo,
indiviso, compartilhando os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os
mesmos costumes e possuindo um destino comum. A idéia de sociedade, ao
contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados
de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornaremse
sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A
comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina; a sociedade, a de
uma coletividade voluntária, histórica e humana.
A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo
sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano.
Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao
soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito
positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados.
Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência,
da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contratos econômicos, isto
é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais
(como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.).
Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta.
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma
assembléia democrática. O fundamental não é o número de governantes, mas a
determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo
absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para
promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir
obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos
naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano
Marilena Chauí
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foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a
propriedade dos bens.
Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa
moral coletiva livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato,
criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais
para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é
o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam
perder a liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a
individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se
fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do
governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e
súditos das leis.
A teoria liberal
No pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um
direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza
(em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem
de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para
garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um
decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em
ascensão.
De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio
econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia
monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também
permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia
precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o
sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da
propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será
feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século
XVIII.
Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos
bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo
trabalho.
Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito
natural?
Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez
uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu
domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança,
deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe
retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto.
Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do
Convite à Filosofia
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homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por
isso, de origem divina, ela é um direito natural.
O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe
atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade.
Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a
nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês
acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres
são parasitas da sociedade.
O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos
nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os
homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito
à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não
conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição
inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros
seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para
adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para
conseguir uma propriedade.
Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de
garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?
A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da
independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século
passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é
tríplice:
1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o
direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo
instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a
idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos
proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades
econômicas;
2. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as
normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercalase
uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder
instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela
existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os
conflitos da sociedade civil;
3. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à
esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos
governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade
de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em
que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.
Marilena Chauí
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Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução
Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de
1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.
Liberalismo e fim do Antigo Regime
As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias
absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder.
O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é,
com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime.
Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo,
em segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina,
natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos
vassalos ou súditos ao senhor.
Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações
entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia.
Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de
pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia da origem divina
do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante.
O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a
propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem
do rei como marido da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo
segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A
propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio
pessoal do monarca. O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal
porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento –
o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados.
As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o
destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual
os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida,
liberdade e propriedade). O indivíduo é o cidadão.
Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da
vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários
privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos,
disputam interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que
uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de
modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade.
Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele
os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento
e do poder judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares.
Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o
rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será
Convite à Filosofia
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eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que
possuírem uma certa renda ou riqueza.
O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência
– e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia
da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus
representantes.
A cidadania liberal
O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três
poderes: o executivo (encarregado da administração dos negócios e serviços
públicos), o legislativo (parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário
(magistraturas de profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui
um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas – exército e
polícia -, encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui
também um corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a
burocracia, encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os
cidadãos.
O Estado liberal julgava inconcebível que um não-proprietário pudesse ocupar
um cargo de representante num dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos
eram os homens livres e independentes, queriam dizer com isso que eram
dependentes e não-livres os que não possuíssem propriedade privada. Estavam
excluídos do poder político, portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a
maioria da sociedade.
Lutas populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o
Estado liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a
cidadania política. Com exceção dos Estados Unidos, onde os trabalhadores
brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII, nos demais países a
cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no
século XX, como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo
concedida por etapas.
Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais,
Inglaterra e França, as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946, após a
Segunda Guerra Mundial. Pode-se avaliar como foi dura, penosa e lenta essa
conquista popular, considerando-se que, por exemplo, os negros do sul dos
Estados Unidos só se tornaram cidadãos nos anos 60 do século passado. Também
é importante lembrar que em países da América Latina, sob a democracia liberal,
os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul
votaram pela primeira vez em 1994. As lutas indígenas, em nosso continente, e
as africanas continuam até nossos diasxix.
Marilena Chauí
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A idéia de revolução
A política liberal foi o resultado de acontecimentos econômicos e sociais que
impuseram mudanças na concepção do poder do Estado, considerado instituído
pelo consentimento dos indivíduos através do contrato social. Tais
acontecimentos ficaram conhecidos com o nome de revoluções burguesas, isto
é, mudanças na estrutura econômica, na sociedade e na política, efetuadas por
uma nova classe social, a burguesia.
O uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso. De fato, essa
palavra provém do vocabulário da astronomia, significando o movimento circular
completo que um astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida. Uma revolução
se efetua quando o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de
partida e seu ponto de chegada. Revolução designa movimento circular cíclico,
isto é, repetição contínua de um mesmo percurso.
Como entender que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político
significando mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder?
Como entender que, em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de
partida, signifique exatamente o contrário, isto é, percurso rumo ao tempo novo e
à sociedade nova?
Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco mais de perto
as revoluções burguesas, isto é, a Revolução Inglesa de 1644, a Revolução Norte-
Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.
Embora em todas elas o resultado tenha sido o mesmo, qual seja, a subida e
consolidação política da burguesia como classe dominante, nas três houve o que
um historiador denominou de “revolução na revolução”, indicando com isso a
existência de um movimento popular radical ou a face democrática e igualitária
da revolução, derrotada pela revolução burguesa. Em outras palavras, nas três
revoluções, a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza,
passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças,
enquanto as classes populares, que participaram daquela vitória, desejavam muito
mais: desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e feliz.
Ora, as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo filosófico e
científico. Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que desejavam
dispunham de uma única fonte: a Bíblia. Através da religião, possuíam duas
referências de justiça e felicidade: a imagem do Paraíso terrestre (no Antigo
Testamento) e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém (no Novo
Testamento) que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela
segunda vez e, no fim dos tempos ou tempo do fim, derrotasse para sempre o
Mal. As classes populares revolucionárias dispunham, portanto, de um
imaginário messiânico e milenarista (milenarista porque o Reino de Deus na
Terra duraria mil anos de felicidade, abundância e justiça).
Convite à Filosofia
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Ao lutarem politicamente, as classes populares olhavam para o passado (o ponto
de partida dos homens no Paraíso) e para o futuro (o ponto de chegada dos
homens na Nova Jerusalém). Olhavam para o tempo futuro e novo – a sociedade
dos justos na Terra -, que seria a restituição ou restauração do tempo passado
original – o Paraíso. Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do
movimento político coincidiam com a existência da justiça e da felicidade, o
futuro e o passado se encontravam, fechando o ciclo e o círculo da existência
humana, graças à ação do presente. Por isso, designaram os acontecimentos de
que eram os sujeitos e protagonistas com a palavra revolução.
Se compararmos os movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII com
a teoria política liberal, notaremos uma diferença importante entre eles.
De fato, as teorias liberais separam o Estado e a sociedade civil. O primeiro
aparece como instância impessoal de dominação (impõe obediência), de
estabelecimento e aplicação das leis, como garantidor da ordem através do uso
legal da violência para punir todo o crime definido pelas leis, e como árbitro dos
conflitos sociais. A sociedade civil, por seu turno, aparece como um conjunto de
relações sociais diversificadas entre classes e grupos sociais, cujos interesses e
direitos podem coincidir ou opor-se. Nela existem as relações econômicas de
produção, distribuição, acumulação de riquezas e consumo de produtos que
circulam através do mercado.
O centro da sociedade civil é a propriedade privada, que diferencia indivíduos,
grupos e classes sociais, e o centro do Estado é a garantia dessa propriedade, sem
contudo mesclar política e sociedade. O coração do liberalismo é a diferença e a
distância entre Estado e sociedade.
Ora, as revoluções, e sobretudo a face popular das revoluções, operam
exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade, entre ação política e
relações sociais. As revoluções pretendem derrubar o poder existente ou o Estado
porque o percebem como responsável ou cúmplice das desigualdades e injustiças
existentes na sociedade. Em outras palavras, a percepção de injustiças sociais
leva às ações políticas. Uma revolução pode começar como luta social que
desemboca na luta política contra o poder ou pode começar como luta política
que desemboca na luta por uma outra sociedade.
Eis por que, em todas as revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o
mesmo processo: a burguesia estimula a participação popular, porque precisa que
a sociedade toda lute contra o poder existente; conseguida a mudança política,
com a passagem do poder da monarquia à república, a burguesia considera a
revolução terminada; as classes populares, porém, a prosseguem, pois aspiram ao
poder democrático e desejam mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a
reprimir as classes populares revolucionárias, desarma o povo que ela própria
armara, prende, tortura e mata os chefes populares e encerra, pela força, o
Marilena Chauí
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processo revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre Estado
e sociedade.
Significado político das revoluções
Uma revolução, seja ela burguesa ou popular, possui um significado político da
mais alta importância, porque desvenda a estrutura e a organização da sociedade
e do Estado. Ela evidencia:
? a divisão social e política, sob a forma de uma polarização entre um alto
opressor e um baixo oprimido;
? a percepção do alto pelo baixo da sociedade como um poder que não é natural
nem necessário, mas resultado de uma ação humana e, como tal, pode ser
derrubado e reconstruído de outra maneira;
? a compreensão de que os agentes sociais são sujeitos políticos e, como tais,
dotados de direitos. A consciência dos direitos faz com que os sujeitos
sóciopolíticos exijam reconhecimento e garantia de seus direitos pela sociedade e
pelo poder político. Eis por que toda revolução culmina numa declaração pública
conhecida como Declaração Universal dos Direitos dos Cidadãos;
? pela via da declaração dos direitos, uma revo lução repõe a relação entre poder
político e justiça social, mas com uma novidade própria do mundo moderno, pois
a justiça não depende mais da figura do bom governo do príncipe virtuoso, e sim
de instituições públicas que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado. Cabe
ao novo poder político criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta
revolucionária por direitos.
As revoluções sociais
Acabamos de ver que as revoluções modernas possuem duas faces: a face
burguesa liberal (a revolução é política, visando à tomada do poder e à instituição
do Estado como república e órgão separado da sociedade civil) e a face popular
(a revolução é política e social, visando à criação de direitos e à instituição do
poder democrático que garanta uma nova sociedade justa e feliz).
Vimos também que, nas revoluções modernas, a face popular é sufocada pela
face liberal, embora esta última seja obrigada a introduzir e garantir alguns
direitos políticos e sociais para o povo, de modo a conseguir manter a ordem e
evitar a explosão contínua de revoltas populares.
A face popular vencida não desaparece. Ressurge periodicamente em lutas
isoladas por melhores condições de vida, de trabalho, de salários e com
reivindicações isoladas de participação política. Essa face popular tende a crescer
e manifestar-se em novas revoluções (derrotadas) durante todo o século XIX, à
medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares se
tornam uma classe social de perfil muito definido: os proletários ou trabalhadores
industriais.
Convite à Filosofia
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Correspondendo à emergência e à definição da classe trabalhadora proletária e à
sua ação política em revoluções populares de caráter político-social, surgem
novas teorias políticas: as várias teorias socialistas.
As teorias socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico e
procuram figurar uma nova sociedade e uma nova política na qual a exploração
dos trabalhadores, a dominação política a que estão submetidos e as exclusões
sociais e culturais a que são forçados deixem de existir. Porque seu sujeito
político são os trabalhadores, essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade
futura como igualitária, feita de abundância, justiça e felicidade. Como percebem
a cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante, julgam que
a existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia
e por isso afirmam que, na sociedade futura, quando não haverá divisão social de
classes nem desigualdades, a política não dependerá do Estado. São, portanto,
teorias antiestatais, que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão
da sociedade.
Marilena Chauí
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Capítulo 10
A política contra a servidão voluntária
A tradição libertária
As teorias socialistas modernas são herdeiras da tradição libertária, isto é, das
lutas sociais e políticas populares por liberdade e justiça contra a opressão dos
poderosos.
Nessa tradição encontram-se as revoltas camponesas e dos artesãos do final da
Idade Média, do início da Reforma Protestante e da Revolução Inglesa de 1644.
Essas revoltas são conhecidas como milenaristas, pois, como vimos, as classes
populares possuem como referencial para compreender e julgar a política as
imagens bíblicas do Paraíso, da Nova Jerusalém e do tempo do fim, quando o
Bem vencerá perpetuamente o Mal, instaurando o Reino dos Mil Anos de
felicidade e justiça. Na Revolução Inglesa, os pobres tinham certeza de que
chegara o tempo do fim e se aproximava o milênio. Viam os sinais do fim: fome,
peste, guerras, eclipses, cometas, prodígios inexplicáveis, que anunciavam a
vinda do Anti-Cristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons.
Em geral, o Anti-Cristo era identificado à pessoa de um governante tirânico:
papas, reis, imperadores. Contra ele, os pobres se reuniam em comunidades
igualitárias, armavam-se e partiam para a luta, pois deveriam preparar o mundo
para a chegada triunfal de Cristo, que venceria definitivamente o Anti-Cristo. A
esperança milenarista sempre viu a luta política como conflagração cósmica entre
a luz e a treva, o justo e o injusto, o bem e o mal.
Também na tradição libertária encontra-se a obra de um jovem filósofo francês,
La Boétie, escrita no século XVI, depois da derrota popular contra os exércitos e
fiscais do rei, que vinham cobrar um novo imposto sobre o sal. La Boétie indaga
como é possível que burgos inteiros, cidades inteiras, nações inteiras se
submetam à vontade de um só, em geral o mais covarde e temeroso de todos. De
onde um só tira o poder para esmagar todos os outros?
Duas são as respostas. Na primeira, La Boétie mostra que não é por medo que
obedecemos à vontade de um só, mas porque desejamos a tirania. Como explicar
que o tirano, cujo corpo é igual ao nosso, tenha crescido tanto, com mil olhos e
mil ouvidos para nos espionar, mil bocas para nos enganar, mil mãos para nos
esganar, mil pés para nos pisotear? Quem lhe deu os olhos e os ouvidos dos
espiões, as bocas dos magistrados, as mãos e os pés dos soldados? O próprio
povo.
Convite à Filosofia
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– 528 –
A sociedade é como uma imensa pirâmide de tiranetes que se esmagam uns aos
outros: o corpo do tirano é formado pelos seis que o aconselham, pelos sessenta
que protegem os seis, pelos seiscentos que defendem os sessenta, pelos seis mil
que servem aos seiscentos e pelos seis milhões que obedecem aos seis mil, na
esperança de conseguir o poder para mandar em outros. A primeira resposta nos
diz que o poder de um só sobre todos foi dado ao tirano por nosso desejo de
sermos tiranos também.
A segunda resposta, porém, vai mais fundo. La Boétie indaga: De onde vem o
próprio desejo de tirania? Do desejo de ter bens e riquezas, do desejo de ser
proprietário. Mas de onde vem esse desejo de ter, de posse? Do desprezo pela
liberdade. Se desejássemos verdadeiramente a liberdade, jamais a trocaríamos
pela posse de bens, que nos escravizam aos outros e nos submetem à vontade dos
mais fortes e tiranos.
Ao trocar o direito à liberdade pelo desejo de posses, aceitamos algo terrível: a
servidão voluntária. Não somos obrigados a obedecer ao tirano e aos seus
representantes, mas desejamos voluntariamente servi-los porque deles
esperamos bens e a garantia de nossas posses. Usamos nossa liberdade para nos
tornarmos servos.
Como derrubar um tirano e reconquistar a liberdade?
A resposta de La Boétie é espantosa: basta não dar ao tirano o que ele pede e
exige. Não é preciso tomar das armas e fazer-lhe a guerra. Basta que não seja
dado o que este deseja e será derrubado. Que quer ele? Nossa consciência e nossa
liberdade, sob o desejo de posses e de mando. Se não trocarmos nossa
consciência pela posse de bens e se não trocarmos nossa liberdade pelo desejo de
mando, nada daremos ao tirano e, sem poder, ele cairá como um ídolo de barro.
Das lutas populares e das tradições libertárias nascem as teorias socialistas
modernas.
As teorias socialistas
São três as principais correntes socialistas modernas. Vejamos, a seguir, o que
cada uma defende.
Socialismo utópico
Essa corrente socialista vê a classe trabalhadora como despossuída, oprimida e
geradora da riqueza social sem dela desfrutar. Para ela, os teóricos imaginam
uma nova sociedade onde não existam a propriedade privada, o lucro dos
capitalistas, a exploração do trabalho e a desigualdade econômica, social e
política. Imaginam novas cidades, organizadas em grandes cooperativas geridas
pelos trabalhadores e nas quais haja escola para todos, liberdade de pensamento e
de expressão, igualdade de direitos sociais (moradia, alimentação, transporte,
saúde), abundância e felicidade.
Marilena Chauí
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As cidades são comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam. Por
serem cidades perfeitas, que não existem em parte alguma, mas que serão criadas
pela vontade livre dos despossuídos, diz-se que são cidades utópicas e as teorias
que as criaram são chamadas de utopiasxx. Os principais socialistas utópicos
foram os franceses Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Louis Blanc e Banqui, e o
inglês Owen.
Anarquismo
O principal teórico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin, inspirado nas
idéias socialistas de Proudhon. Seu ponto de partida é a crítica do individualismo
burguês e do Estado liberal, considerado autoritário e antinatural. Como
Rousseau, os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos
seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades,
atribuindo a origem da sociedade (os indivíduos isolados e em luta) à
propriedade privada e à exploração do trabalho, e a origem do Estado ao poder
dos mais fortes (os proprietários privados) sobre os fracos (os trabalhadores).
Contra o artificialismo da sociedade e do Estado, propõem o retorno à vida em
comunidades autogovernadas, sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade
com poder de mando e direção. Afirmam dois grandes valores: a liberdade e a
responsabilidade, em cujo nome propõem a descentralização social e política, a
participação direta de todos nas decisões da comunidade, a formação de
organizações de bairro, de fábrica, de educação, moradia, saúde, transporte, etc.
Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem
federações nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais,
evitando, porém, a forma parlamentar de representação e garantindo a
democracia direta.
As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações.
Os delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto
que será tratado pela assembléia da federação; terminada a assembléia, o
mandato também termina, de sorte que não há representantes permanentes. Visto
que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federação as
opiniões e decisões de sua comunidade, se não cumprir o que lhe foi delegado,
seu mandato será revogado e um outro delegado eleito.
Como se observa, os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de
poder que conduzam à formação do Estado. Recusam, por isso, a existência de
exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das milícias
populares, que se formam numa emergência e se dissolvem tão logo o problema
tenha sido resolvido. Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo e da
opressão capitalista e, por isso, contra ele, defendem o internacionalismo sem
fronteiras, pois “só o capital tem pátria” e os trabalhadores são “cidadãos do
mundo”.
Convite à Filosofia
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Os anarquistas são conhecidos como libertários, pois lutam contra todas as
formas de autoridade e de autoritarismo. Além de Bakunin, outros importantes
anarquistas foram: Kropotkin, Ema Goldman, Tolstoi, Malatesta e George
Orwell, autor do livro 1984xxi.
Comunismo ou socialismo científico
Crítico não só do Estado liberal, mas também do socialismo utópico e do
anarquismo. Encontra-se desenvolvido nas obras de Marx e Engels.
A perspectiva marxista
Com a obra de Marx, estamos colocados diante de um acontecimento comparável
apenas ao de Maquiavel. Embora suas teorias sejam completamente diferentes,
pois respondem a experiências históricas e a problemas diferentes, ambos
representam uma mudança decisiva no modo de conceber a política e a relação
entre sociedade e poder. Maquiavel desmistificou a teologia política e o
republicanismo italiano, que simplesmente pretendia imitar gregos e romanos.
Marx desmistificou a política liberal.
Marx parte da crítica da economia política.
A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do
grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos. Oikos é a casa ou
família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio, edificações,
artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda, etc.).
Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos e por eles
respeitado nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de normas de
administração da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da
família, o despotes.
Vimos que os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado –
a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito – a polis. Como, então,
falar em “economia política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente?
A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que, apesar das
afirmações greco-romanas e liberais de separação entre a esfera privada da
propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu realizar a
diferença entre ambas. Nem poderia. O poder político sempre foi a maneira legal
e jurídica pela qual a classe e